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"Como uma bofetada"

Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz - 40 Anos!

Dando segmento à nossa retrospectiva de críticas, textos e artigos que rememoram a trajetória de 40 anos da Tribo, nesta quinta feira compartilhamos um texto publicado no jornal Zero Hora, datado de novembro de 1997, há exatos 20 anos. 

"Como uma bofetada"
Jornal Zero Hora em 23 de novembro de 1997
Iria Pedrazzi

Primeiro vinham os grunhidos, depois aqueles corpos se contorcendo emergiam em meio à sujeira sintética espalhada pelo palco. Coberto com panos que compunham roupas maltrapilhas, os atores ousavam deixar à mostra, vez por outra, seu órgão sexual totalmente desinibido. A platéia toma um susto. Enche o peito. Ergue a cabeça. Coloca os sentidos em alerta e prepara-se para o ato. Reage como se estivesse prestes a ser estuprada em sua virgindade. Então vêm as palavras. O texto rude, contestatório, duro contra os valores burgueses, surge em vozes distorcidas. Vem em ritmo tão anárquico que tem o efeito de uma bofetada. De qualquer forma, a audácia da proposta deixa pouco tempo para refletir sobre o discurso verbal. A agressividade da forma dá uma força visceral ao texto. Paralisa o raciocínio lógico da platéia e obriga o instinto a reagir. O clímax ainda nem chegou e algumas pessoas indignadas deixam o teatro. A maioria fica, mas não sem esboçar reações. É um ensaio geral de movimentos. O público se remexe nas cadeiras do teatro, muitas faces exibem um ar de reprovação. Ós! Ecoam surdos como gemidos trancados. O ritual prossegue tenso. Olhares estarrecidos, temerosos, na platéia se misturam aos que, cheios de brilho, aplaudem ou até se deliciam com tudo aquilo. Esses, raros, é bem verdade. Políticos engravatados e intelectuais gaúchos misturam-se a protótipos do movimento hippie, com suas batas indianas combinadas com fitas nos cabelos. Há ainda na platéia uma legião de estudantes politizados, estudiosos de Marx e de Engels, acostumada a correr da polícia em passeatas no centro da cidade. Estarrecidos, todos participam da apresentação do novo grupo de teatro da Capital. Os atores invadem a platéia com seus grunhidos e seu texto arrojado, para sentar no colo de um espectador, abraçar outro e experimentar uma interação com todos. Há corre-corre. Gritos. Uns abafados, outros descaradamente apavorados. A maioria do público corre e se concentra em grupos. Público que, instantes antes, fora alvo dos respingos de leite de uma cena que se desenrolara no palco. Enquanto os atores encontram raros espectadores mais corajosos para interagir diretamente, a maior parte esgueira-se pelas laterais do auditório da Assembléia Legislativa do Estado. Quando o ator faz menção de ir para um lado, todos vão para o outro. Ninguém fica imune. De repente, tudo parece voltar ao seu lugar. Com os atores novamente no palco, contingentes da platéia, mesmo desconfiados, retomam suas cadeiras. Não demora muito para pedaços de carne crua, escorrendo sangue, começarem a voar pelos ares da quase imaculada sala do Legislativo estadual. Caem no colo dos menos avisados.
Definitivamente o teatro gaúcho havia inaugurado uma fase radical, típica de grupos de vanguarda norte-americanos como o Living Theatre ou o Bread and Puppet.

Naqueles meados de 1978, quando transcorria o 2º Encontro Gaúcho de Teatro, o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz surpreendeu com as encenações das peças A Felicidade Não Esperneia, Patati, Patatá e A Divina Proporção, de Júlio Zanotta Vieira, com direção de Paulo Flores. Levou a polêmica para a Assembléia Legislativa, reduto de resistência ao regime militar, onde se reuniam alguns dos mais atuantes intelectuais da época. O Ói Nóis ousou. Chocou como seu primeiro trabalho.

Quem viu, ouviu, sentiu, correu, temeu, gostou, refletiu, jamais esqueceu. Como se fora uma bofetada.

A Divina Proporção e A Felicidade não esperneia,
Patati, Patatá [1978] - Arquivo da Tribo