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Medeia Vozes e a discussão de Gênero e Memória

Publicamos abaixo a continuação do artigo de Natasha Centenaro (compartilhado aqui na semana passada) "De feiticeira grega às estrangeiras contemporâneas: Medeia vozes e a discussão de gênero e memória".

Em vésperas de celebrar 40 anos de trajetória, viemos a público informar que Medeia Vozes - uma das maiores obras do Teatro Brasileiro, da última década - entrará em cartaz em Porto Alegre nos meses de março e abril/2018. Medeia Vozes vem aí!!!

Continuação...

De feiticeira grega às estrangeiras contemporâneas: Medeia vozes e a discussão de gênero e memória
Natasha Centenaro (PUCRS)


A perspectiva trabalhada pela autora alemã Christa Wolf no seu romance e incorporada pelo coletivo, parte da ideia de resgatar a figura feminina transformadora, da cura, da força, da sabedoria, do poder de decisão e do espírito de resistência, abdicados na versão trágica de Eurípides em favor da esposa orgulhosa e infanticida. O Ói Nóis Aqui Traveiz, porém, expande o gesto e procura na interlocução de vozes femininas imprescindíveis ao século XX discutir o papel social, político e cultural da mulher. A amplificação dos discursos (suas vidas, histórias, sofrimentos e lutas) de Devi, Luxemburgo, Dirie, Meinhof e Chungara, enfatiza as problemáticas da violência contra a mulher, nas esferas de poder público e privado: violência física, sexual, hierárquica, simbólica (da mutilação genital na África ao estupro coletivo na Índia à perseguição na Alemanha Ocidental à prisão e aos maus-tratos na América do Sul). 

A construção do texto evidencia essa amplificação e pluralidade de vozes, tendo como base o romance de Wolf e a inserção dos relatos das mulheres reais, numa técnica de bricolagem, de costura (a colcha de retalhos da miscigenação, dessa combinação entre o real e o ficcional), na apropriação dos discursos pelo eixo central do enredo. O desenvolvimento da trama é não-linear, começando in media res com Medeia já em Corinto, em flashback (a memória da mulher / o relato de Jasão – a voz masculina / a ruptura da temporalidade) a chegada de Jasão e dos Argonautas na Cólquida, para retornar a Corinto até o julgamento, banimento e exílio da personagem-título. Entremeado pelos relatos das outras vozes femininas, destacando-se o uso de cartas e depoimentos das histórias reais. 

Para pensar essa ideia de pluralidade – as muitas vozes das muitas Medeias (somos todas Medeias) –, corroborando ao que a Tribo de atuadores propôs nesse espetáculo, buscase na teoria de Judith Butler aporte para a discussão de gênero. De acordo com Butler (2003), gênero não pode ser descritivo e nem prescritivo, pois não pode ser considerado imutável, fixo e não possui uma estabilidade natural. Não existe uma identidade de gênero que seja anterior a sua performatividade. O sujeito, diferentemente daquele sujeito entendido pela política como estável, é encarado como uma categoria linguística, como uma estrutura em formação e transformação. Desse modo, nenhum indivíduo torna-se sujeito se não foi antes “sujeitado” ou tenha passado pelo processo de subjetivação. O problema é que essa representação política e linguística apresenta tão e somente essas duas opções: dentro do binarismo homem e mulher, nas quais os sujeitos devem se conformar – e se enquadrar normativamente. 

Conforme a pesquisadora, faz-se necessário repensar a ideia que norteou o feminismo até a década de 1980, o qual buscava reposicionar a mulher como sujeito unificado dessa luta emancipatória, e que entendia a dualidade entre sexo como algo natural e gênero como socialmente construído. Gênero, assim, estaria compreendido nas categorias de substância, sentido e essência, integrado à metafísica da substância. Mas como esse sujeito poderia ser / estar unificado, questiona-se, sendo o gênero um efeito, bem como a noção de identidade uma expressão desse sujeito e não o sujeito em si, centralizado? Por isso, Butler (2003) sugere, apesar de ressalvas, tratar esse tema por meio da pluralidade, visto a realidade instável da pósmodernidade: “mulheres”, ao invés de “mulher” (sujeito unificado) e levando em conta outras características como etnia, raça, faixa etária, condições sociais e culturais, por exemplo. Cabe, aqui, pensar e citar as teorias Queer e a própria ideia do pós-feminismo, que pretende deslocar a noção do sujeito da história como premissa, o que não quer dizer excluí-lo de todo, recusá- lo ou torná-lo ausente do debate, porém substituir o termo “mulher” e gênero feminino por uma proposição de identidade social, complexa, plural, múltipla e fragmentada, em que o gênero seria um dos tantos aspectos importante e fundamental. Todas são Medeia. Todas são e somos a voz de Medeia. Uma voz de coletividade e pluralidade. De resistência. Porque somos estrangeiras para um mundo patriarcal. E somos estrangeiras para nós mesmas. Ainda somos bárbaras. Julia Kristeva, em Estrangeiros para nós mesmos (1994), atribui a Eurípides o uso frequente do adjetivo “bárbaro” no sentido pejorativo: “excêntrico”, “inferior”, relacionado à selvageria, à crueldade e ao mal, deixando de ser vinculado à nacionalidade estrangeira, mas ao caráter e à moralidade. No caso da mulher como estrangeira, para si mesma e para o outro – o olhar masculino de superioridade e de julgamento (condenação) – está o agravante da situação imposta por esse outro – gênero – como se fosse uma perspectiva normativa de convívio entre as próprias mulheres, ou seja, os homens definem, dizem, afirmam, julgam o comportamento, o modus operandi e as relações sociais femininas e fazem com que essa ação se torne um reflexo de uma ação enganadora, uma ilusão de que essa é uma prática do gênero feminino como estrangeiro – bárbaro – inferior, portanto, ameaçador. Em consonância com o pensamento das vozes plurais e da estrangeridade presente não apenas na personagem Medeia, mas também em Glauce, a que não entende a sua situação – estrangeira para si mesma, aquela que se lembra da irmã Ifínoe como presença da infância e como voz perturbadora de um presente / passado repleto de segredos (em nome da política, 8 tem-se o sacrifício), a que está em condição de “auto-sacrifício”, disposta a se casar com Jasão pelo bem maior, o bem coletivo da polis. 

QUINTA VOZ – GLAUCE 



CENA 24 - A MULHER
Quando temos medo, temos de conhecer o terreno que nos cerca, como um animal fraco na selva, a mulher entendia disso, sabia muito bem como não é fácil afastar de nós o medo, como ele espreita por debaixo da pele para poder saltar de novo. 

CENA 25 - QUARTO DE GLAUCE 
Jasão agora aparece mais vezes, e a cada vez meu coração, tolo como é, dá um salto. Esqueço que é meu pai quem o manda. Mas eu bem sei que ele está preso à outra, está e estará, ninguém se liberta dela. 

CENA 26 - LEMBRANÇA DA IRMà
Ouvi um eco. E mais nada. Depois o grito da mãe. Como um animal no matadouro. (...) Ifínoe. Nunca mais voltei a ouvir este nome, nunca mais o pronunciei, nem nele pensei, desde aquela noite. 

CENA 27 - O CASTIGO 
A culpa é toda minha. Eu sabia que o castigo tinha de vir, eu sei bem o que é isso de ser castigada. O castigo agita-se dentro de mim muito antes de eu lhe conhecer o rosto, agora já o conheço. (...) A peste. Pode haver uma culpa que arraste atrás de si a peste? (MEDEIA VOZES, Roteiro de cenas. Programa da peça, Impresso, s/d).

A estrangeridade está nas vozes evocadas por mulheres sufocadas, caladas e que tiveram suas liberdades extirpadas, na representação da memória coletiva de africanas, indianas, bolivianas, mulheres do mundo, através da rememoração do passado individual das mulheres reais: a mutilação genital aos cinco anos de idade que sofreu a somali Waris Dirie; o casamento forçado aos onzes anos, a violência diária, a luta pelos “sem-casta”, os de “baixacasta” e pelas mulheres que enfrentou a indiana Phoolan Devi até se tornar líder de um grupo rebelde de assaltantes de castas superiores; os esforços por melhores condições de trabalho nas minas de minério e contra os desmandos da ditadura militar na Bolívia, a violência sofrida na prisão por Domitila Chungara – “Sua indignação contra os militares após o massacre de São João, em 24 de junho de 1967, custou a vida de seu filho que morreu ao nascer numa cela lúgubre, sem auxílio e vítima dos chutes e golpes dos militares, que a detiveram por afronta” (MEDEIA VOZES, Programa da peça, Impresso, s/d). 

[Sic] Mais que favorecer a linha feminina, critica-se a genealogia masculina, que ocasiona vítimas e a discriminação de mulheres e criação. (...) A configuração das diferentes vozes acaba demonstrando a inocência de Medeia e com isso, o patológico desenvolvimento das relações sociais na civilização ocidental. Medeia é uma marginalizada, porque não corresponde à imagem feminina que a sociedade masculina considera apropriada. Medeia supõe o paradigma da mulher inocente, difamada e demonizada pelo discurso patriarcal, que acaba lhe isolando. Tomando características próprias da performance – como abertura, pluralidade, estruturas não lineares, quebra de relações de temporalidades definidas – que são conformadoras de uma outra forma de narrativa, a encenação do Ói Nóis Aqui Traveiz dá voz a mulheres reais de ação que deixam ou deixaram relatos de violência e intolerância. Nossa história está repleta de mulheres que foram e são rechaçadas como Medeia. (...) Uma colcha de retalhos que costura vozes de mulheres, vozes mudas caladas, engasgadas nas gargantas, vivificando a atuação dessas mulheres de épocas e culturas distintas, que possuem em comum o inconformismo e o sonho de liberdade. Cria-se um circuito entre a voz de Medeia, as vozes da memória, e as vozes atualizadas pelas histórias do presente. São vozes-mulheres, o plural a representar a coletividade. Vozes-mulheres que recolhem em si, a fala e o ato, o ontem e o hoje, o agora. Vozes-mulheres que ressoam o eco da vida-liberdade. Afirmação de existência (MEDEIA VOZES, Programa da peça, Impresso, s/d). 

A narrativa central da peça, por si só, questiona os lugares de fala e o tom da voz outorgado pelo poder patriarcal à bárbara feiticeira da Cólquida nas terras civilizadas da polis corintiana, principalmente, quando subverte a perspectiva do tragediógrafo grego Eurípides. Medeia, aqui, é vítima de uma luta de poderes político e econômico, e não é mais compreendida como a mulher da paixão desmedida, que provoca o assassinato do próprio irmão, Apsirto, do rei Creonte, de Glauce e a causadora do infanticídio pelo qual ficou conhecida por séculos. Essa voz ficcional transformadora e transformada da personagem vem acompanhada pela inserção das vozes reais das Medeias Contemporâneas, através de cartas, entrevistas, depoimentos e relatos. É o que se pode chamar de resgate, de rememoração da memória individual dessas mulheres, resultando em um produto artístico, a fim de atingir e conclamar as memórias coletivas e sociais (também de fatos históricos – a prisão da ativistaguerrilheira Ulrike Meinhof, do Grupo Baader-Meinhof, na Alemanha Ocidental, por exemplo) de tantas outras mulheres (em alguns desses, ainda maioria) de povos multiculturais, colonizados, os quais enfrentaram guerras civis e étnicas, de consequentes conflitos políticos, sociais e econômicos, de desigualdades e minorias. 

De acordo com Maurice Halbwachs (2006), é necessário que exista um testemunho para que um fato se perpetue e se torne memória para um determinado grupo social. Para Halbwachs, a memória, embora pareça individual e de domínio particular, está em constante interação com a sociedade, tendo em vista que as lembranças também são coletivas, e que se precisa da memória do outro para ativar essa memória individual. Ela continua existindo per si, contudo, congrega a participação de outros atores nesse processo, estabelecendo, assim, uma conexão direta, além de instituir uma relação de identificação, sobretudo, por aquela memória individual com a memória do grupo ao qual integra e interage. 

No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social (HALBWACHS, 2006, p. 54).


 Para Beatriz Sarlo (2007), em um tempo de subjetividades, tenta-se compreender qual é o papel desse subjetivo na esfera pública, visto que buscam-se as identidades e os sujeitos reaparecem para relatar suas experiências – porque é um tempo de experiência e de se tentar encontrar a(s) verdade(s). O testemunho está diretamente ligado ao fato político e ao contexto das ditaduras militares na Argentina (1976), no Chile e no Uruguai (1973), segundo Sarlo. Os depoimentos das “vítimas-testemunhas” deixa o cenário jurídico dos julgamentos e das condenações dos crimes cometidos (ferramenta indispensável para a redemocratização) e passa a ter forte impacto em níveis culturais, sociais e pelo fator ideológico. A reconstituição e a rememoração desses fatos pela linguagem transformam a experiência em narração da experiência: pois não existe uma forma de se testemunhar sem a experiência e não existe a experiência sem a narração. É pela linguagem que se rompe o “aspecto mudo” da experiência, evita-se, com isso, o seu esquecimento e reabilita-a do tempo imediato do acontecido. “A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2007, p. 25)”. 

O testemunho como rememoração de uma memória individual para uma memória coletiva (Halbwachs), portanto de reatualização e a partir da narração da experiência como proposto por Beatriz Sarlo, aparece ao longo da peça nas seguintes cenas: “6 - Depoimento de Waris Dirie”; “19 - Depoimento de Phoolan Devi”; “32 - Na Prisão (Carta de Ulrike Meinhof)”; “34 - Despedida dos filhos (Carta de Rosa Luxemburgo)”; “37 - Refugiados latino-americanos – Depoimento de Domitila Chungara”. Segue a transcrição das cenas 6, 19, 32 e 373 : 

CENA 6 - DEPOIMENTO DE WARIS DIRIE 
Bem se sabe que em consequência desta mutilação as mulheres adoecem psicologicamente e fisicamente para o resto de suas vidas. Essas mesmas mulheres são a espinha dorsal da África. Eu sobrevivi, mas as minhas duas irmãs não. Sofia morreu de hemorragia depois de ser mutilada e Amina faleceu no parto, com o bebê ainda no seu ventre. Até que ponto nosso continente se fortaleceria, se um ritual tão selvagem fosse abolido? 




CENA 19 - DEPOIMENTO DE PHOOLAN DEVI 


Eu rezei aos deuses e deusas para me ajudar, para me deixar viver, deixar-me correr pelos campos úmidos, subir os barrancos, deixar-me ter a minha vingança e matar o demônio de cabelos vermelhos. Então a escuridão voltou, e outro homem estava gemendo sobre meu corpo, um homem velho, um espírito suando com cheiro de morte. 



CENA 32 - NA PRISÃO (CARTA DE ULRIKE MEINHOF) 
Desperto, abro os olhos: a cela se move. Depois do meio-dia, quando o sol entra, de repente, fico parada. Não consigo afastar a sensação de que a cela se move. Não consigo explicar se tremo de febre ou de frio. (...) A sensação de que tempo e espaço se encaixam um no outro. A sensação de encontrar-se numa sala cheia de espelhos deformantes. Cambalear-se. A sensação de mover-se em câmera lenta. A sensação de encontrar-se no vazio. 

CENA 37 - REFUGIADOS LATINO-AMERICANOS – DEPOIMENTOS DE DOMITILA CHUNGARA 



Senti como se tivesse arrebentado algo na minha cabeça... Via como que fogo caindo ao meu redor. Sentia um medo horrível, não conseguia distinguir nada. Ele voltou e me falava: Cadela faminta, o que queria? Comer a minha mão? Me batia com muita raiva. Está esperando seu filho aqui. É no seu filho que eu vou me vingar. (MEDEIA VOZES, Roteiro de cenas, Programa da peça, Impresso, s/d). 





Considerações finais 

A ambientação e a movimentação dos atores – atuadores e também do público (não há espaço delimitado, nem assentos; a plateia é incorporada e interage em cena, partilhando as refeições do Ritual da Primavera; como parte dos cidadãos de Corinto, para quem os personagens se dirigem no julgamento da estrangeira; ou no banquete de recepção aos Argonautas na Cólquida, por exemplo) desde os tapetes orientais, a areia da terra bárbara, o cimento de Iolco, os pedregulhos da gruta – galeria onde está o corpo de Ifínoe –, ao branco asséptico da cela de Ulrike Meinhof, às folhas e a árvore do exílio de Medeia, do solo, o chão, ao céu (o plano alto representa o poder patriarcal: Acamante fala de cima – em um trono fixado junto à parede, quase no forro da sala – para Medeia, no solo – plano baixo) corroboram à encenação pós-dramática do acontecimento teatral proposto por Lehmann (2007) e ao teatro de vivência – a celebração da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.

Nesse sentido, a encenação se revela para além da utilização dos elementos cênicos, do uso dos diferentes planos, espaços, corredores, passarelas e escadas da sala, mas garante outros significados, de função espacial e narrativa a esses ambientes e objetos, é a semiótica de um texto – discurso – identificado em imagens e elementos cênicos plenamente realizáveis. 
O mesmo vale para o figurino. O vestido-ninho-de-noiva de Glauce (a pureza da virgem à espera de ser devorada pelo futuro esposo) e a gaiola de Jasão (o passarinho preso e calado – o poder econômico e político balizando as relações: casando-se com Glauce, ele se torna o Rei de Corinto), as referências às vestimentas típicas orientais, bem como das índias da América do Sul, dos refugiados africanos, das mulheres do Ritual da Primavera, o contexto histórico, geográfico e cultural, evitam, com isso, sublinhar a cena. Porque fazem parte da cena. 

A discussão de gênero e a questão da estrangeridade estão presentes em diferentes cenas e desde o eixo cênico ao eixo discursivo-narrativo: a mesa inclinada no banquete do palácio em Corinto (Medeia na ponta inferior), a nau dos Argonautas levada pelas ondas do Mediterrâneo (Medeia e Jasão: enquanto casal e a descoberta, o sentimento, a renúncia, o amor, o pertencimento), a torre da cúpula de Corinto: Acamante, Creonte e Jasão (“em função de valores mais altos”), o balanço em que se encontram Jasão e Glauce (no vaivém do poder e da situação arranjada), o terremoto (humano) e a peste – a cena da areia sendo retirada dos sapatos e as esteiras de corpos nus – o suicídio de Glauce, a balança do julgamento de Medeia (dois pesos – uma medida: carne – mulher). Assim, é possível entender que as inserções de depoimentos das vozes das Medeias contemporâneas funcionam como narrativa da experiência do testemunho e rememoração da memória coletiva. 

DÉCIMA VOZ – MEDEIA
CENA 42 - MEDEIA NO EXÍLIO
Mortos. Apedrejados. E eu que pensei que sua sede de vingança terminaria com a minha saída. Cega. Pensava nas crianças como se de vivos se tratassem. Não foi desta vez que os coríntios me deixaram em paz, dizem que eu matei meus filhos. Que eu, Medeia, quis me vingar da traição de Jasão. Quem vai acreditar numa história destas? Então era essa a ideia. Eles próprios se encarregam de transmitir aos que virão, a minha imagem de infanticida. Mas para que lhes serve isso, comparado com os horrores do passado com que têm de viver? Porque nós, nós somos incorrigíveis. Querem os deuses ensinar-me a acreditar de novo neles? Fazem-me rir. Agora sou superior a eles. Onde quer que me toquem com suas cruéis antenas, não encontram em mim uma réstia de esperança ou de medo. Morreu o amor, e também a dor se apaga. Sou livre. Sem desejos, escuto o vazio que me enche toda. E a mim, que me resta? Amaldiçoá-los. Malditos sejam todos! Que se abata sobre Corinto uma vida de horrores! Que os seus uivos cheguem aos céus sem os comover! Eu, Medeia, os amaldiçoo. Eu, Medeia, amaldiçoo a todos! E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta. A ferida sara, quando os gritos morrem. O sofrer tem limites, além dos limites fica um nada obtuso, onde se suporta o insuportável. O grito travado na garganta sobe como câncer na alma, nasce muito mais tarde e derruba os palácios. 
MEDEIA VOZES, Roteiro de cenas, Programa da peça, Impresso, s/d).

Fotos Pedro Isaias Lucas


REFERÊNCIAS:

BELLOMO, Harry Rodrigues. “Mitologia greco-romana”. In. FLORES, Moacyr. (Org.) Mundo greco-romano: arte, mitologia e sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ___________________. Cuerpos que importan: Sobre los limites materiales y discursivos del sexo. Buenos Aires: Paidós, 2002. FLORES, Moacyr. (Org.) Mundo greco-romano: arte, mitologia e sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo, Perspectiva, 2007. MEDEIA VOZES. Programa da peça. Impresso. Sem data. ______________. Roteiro de cenas. Programa da peça. Impresso. Sem data. RINNE, Olga. Medéia: O direito à ira e ao ciúme. São Paulo: Cultrix, 1988. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ. Blog institucional.