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MEDEIA VOZES: Por uma revivência do trágico [entre o não-lugar e a utopia]

Compartilhamos abaixo o texto de Carla Melo sobre o espetáculo Medeia Vozes da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. O espetáculo será encenado de 8 a 30 de março (quintas e sextas), às 19h30, na Terreira da Tribo (Rua Santos Dumont, 1186).

E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta. A ferida sara, quando os gritos morrem. O sofrer tem limites, além dos limites fica um nada obtuso, onde se suporta o insuportável. O grito travado na garganta sobe como câncer na alma, nasce muito mais tarde e derruba os palácios.
Último monólogo de Medeia, em Medeia Vozes, direcionado ao público.


Comecemos pelo final. Ouçamos o eco do grito mudo. Para que escutemos em que vozes este renascerá. Embora devido à labiríntica não-linearidade do Medeia Vozes talvez pudéssemos começar por qualquer uma de suas cenas, por qualquer uma de suas vozes. Mesmo assim eu os convido a ingressar pela saída desta peça multipremiada da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – os convido a entrar no espaço em que os atuadores dessa tribo nunca voltam para receber os aplausos, justamente porque as palavras, signos e presenças das últimas cenas desse “teatro de vivência” (cujo elemento estético e político central é exatamente o da con-vivência), nos desafiam a não ver o final da peça como um ponto final, mas sim como continuação de uma linha de reflexão profunda sobre, entre outras coisas, os significados e a potência do não-lugar. 

Após três horas de um teatro ritual que comporta múltiplas temporalidades e espaços, somos conduzidos à frente de uma sala feita quase impenetrável pela quantidade de árvores e galhos secos lá instalados. No fundo deste inóspito ambiente, é por entre os galhos que avistamos uma Medeia envelhecida que, sentada numa pedra, compartilha um elemento chave da sua versão da história: 


Mortos. Apedrejados. E eu que pensei que sua sede de vingança terminaria com a minha saída. Cega. Pensava nas crianças como se de vivos se tratassem. Não foi desta vez que os coríntios me deixaram em paz, dizem que eu matei meus filhos. Que eu, Medeia, quis me vingar da traição de Jasão. Quem vai acreditar numa história destas?

A grande ironia deste questionamento que é feito diretamente a nós, é que nos coloca na posição de crédulos e ignorantes, ao mesmo tempo que nos incita a questionar o que nos levou a acreditar nisto. Foi este tipo de questionamento que levou Christa Wolf a desafiar a versão de Eurípedes na qual uma mulher traída é movida pelo desejo de vingança a cometer o mais hediondo dos crimes: matar os próprios filhos. Além disso, na versão clássica, ela trai a própria família, assassina seu irmão, mata a “Outra” e, acidentalmente, causa a morte do futuro sogro de seu marido, Rei de Corinto, adicionando, assim, o regicídio à sua lista de crimes. Ao investigar outras versões do mito de Medeia, a escritora alemã, dando continuação ao seu projeto revisionista  de cunho feminista, traça um retrato de uma mulher cujo único delito talvez tenha sido o de abandonar a sua própria terra, ao invés de permanecer e resistir às mudanças que cada vez mais soterravam os velhos princípios de sua sociedade de raízes matriarcais. Devido a seus poderes mágicos e por saber demais, ela foi usada pelo marido e demonizada pelo poder civilizatório de Corinto – seu novo lar que nunca a aceitou – como bárbara, assassina e bruxa.
Seguindo estratégias cênicas multissensoriais, multiespaciais, de caráter itinerante, imersivo e interativo, as quais fazem parte de uma linguagem denominada “teatro de vivência” que vem sido desenvolvida ao longo das décadas, o Ói Nóis, em sua interpretação da Medeia Vozes de Wolf, também explora a riqueza do bidimensional, que serve, a meu ver, como metáfora para um dos temas centrais da peça: o reducionismo e achatamento humano que a vitória do racionalismo patriarcal “civilizado” sobre o mundo bárbaro matriarcal representam. Isso se manifesta na cena através do apedrejamento a que Medeia se refere, pois este é representado pelo ataque de “cães” (interpretados por atores cobertos em peles) que atiram sacos de tinta vermelha em um desenho retratando duas crianças. A linguagem gráfica deste desenho de giz é a infantil, na qual a figuração humana se compõe através de riscos e círculos. Neste sentido, o assassinato é ludicamente sugerido mas somente confirmado pelo monólogo que abre a última cena. Além disso, a representação dos agentes da pólis, da civilizada cidade-estado de Corinto, como cães e a dos filhos de Medeia como simples figuras rabiscadas claramente ressignifica os primeiros como bárbaros (invertendo portanto os papéis entre agentes bárbaros e civilizadores) ao passo que minimiza o papel dos filhos e da identidade de Medeia como mãe. 
Apesar deste monólogo final evidenciar um número de contradições, creio que o paradoxo maior surge no momento em que Medeia declara: 
Agora sou superior a eles. Onde quer que me toquem com as suas cruéis antenas, não encontram em mim uma réstia de esperança ou de medo. Morreu o amor, e também a dor se apaga. Sou livre. Sem desejos, escuto o vazio que me enche toda.
A conquista desse “vazio cheio” alcançado através de experiências extremas, a liberta justamente porque estas a levaram a transcender toda a dor, medo, desejo e esperança, posicionando-a no que podemos chamar de não-lugar.
Etimologicamente falando, o não-lugar é a tradução de “utopia”, no sentido de um lugar que só existe na imaginação, mas que impulsiona a ação humana em direção a construção de um mundo melhor. Contudo, nessa reinterpretação feminista do mito de Medeia, ela, ao invés de ser salva por Hélios (escapando de qualquer punição pelos seus ditos crimes) é condenada ao não-lugar no seu sentido mais profundo: ao espaço do exílio contínuo, apesar de ser uma inocente vítima de calúnias. O tom profetizador de sua despedida, no entanto, anuncia que todo seu sofrimento, por mais inexorável que pareça, há de eventualmente se transmutar em energia revolucionária – o que de forma paradoxal semeia a utopia em pleno território distópico. 
Esta leitura se confirma, de certa forma, pela maneira com a qual Medeia, virtuosamente interpretada por Tânia Farias, abandona o espaço de representação e, como se não houvesse nenhum limiar entre este e o espaço do cotidiano urbano, caminha lenta e deliberadamente para fora do teatro. Ao passo que ela se mete rua escura adentro, carregando um cargo de galhos no ombros até desaparecer do alcance de nossos olhares, as fronteiras entre a ficção e o “real” são obliteradas e o seu drama de mulher pária e marginalizada por suas origens é transposto ao nosso cotidiano, a essa realidade de tamanha disparidade social. Mas o gesto também ressignifica a estória contada por Wolf: se o vazio a bastasse, por que continuaria na labuta, se confundindo com outros trabalhadores informais que vivem dos detritos urbanos?
Nesse sentido, a desmistificação do mito também acaba por tocar os estigmas sociais acerca de trabalho urbano informal. Além disso, a jornada de Medeia, que (na versão do Ói Nóis) inclui as vozes de outras “Medeias” do século XX, vindas de distintos países da Europa, África, América Latina e Ásia, como Rosa Luxemburgo , Ulrike Meinhof , Waris Dirie , Domitila Chungara  e Phoolan Devi , o que empresta maior contemporaneidade à encenação. Ao desembarcar na rua – num final sem fim, num caminhar pelo Brasil, Porto Alegre, Bairro São Geraldo adentro – Medeia não só ocupa o não-lugar, aquela tábula rasa, aquele vazio abismal que por vezes é necessário para impulsionar a visão utópica, como também faz desta desconstrução da tragédia clássica, uma tragédia verdadeiramente contemporânea. 
Mas qual é a essência da experiência da tragédia e como ela pode ser ativada nos palcos de hoje? Será que o teatro contemporâneo é ainda capaz de produzir uma experiência do trágico para o público?  O que traz contemporaneidade para o trágico? E ainda, haverá lugar para a experiência do trágico num mundo no qual o excesso de acesso a informações (que dá preferência à quantidade em detrimento de um aprofundamento destas) gera, como consequência, uma epistemologia marcada pela falta de atenção prolongada e pela diminuição da capacidade empática? Ou seja, será que podemos nesse mundo marcado pelo excesso de informações, que geralmente resultam numa certa “dessensitivização” acerca do sofrimento alheio, viver o trágico dentro do âmbito da representação? E se for, qual seria a especificidade do trágico dentro do “teatro de vivência”? E como fazê-lo fugir do efeito catártico já indicado por Brecht e Boal  como culpado por reproduzir o conformismo? E por que essa preocupação com o trágico? Qual o seu potencial?

Talvez a resposta para essas perguntas deva partir do começo: isto é, a partir de reflexões sobre a tragédia grega como gênero teatral. Segundo Stephan Baumgärtel, o herói da tragédia clássica não só aciona as “duas forças culturais e políticas opostas: o mundo tribal e matriarcal antigo e o mundo político e patriarcal novo” (que acabam por dilacerá-lo), como é posicionado “no centro de um conflito que não é moralista nem individual, mas coletivo e político, o que confere à sua dor e seu terror uma dimensão não privada. A composição moderna, contudo, mostra que o herói simplesmente tomou a decisão errada.” Então pode-se dizer que se trata de uma distinção entre a ética da tragédia grega e a moralidade como se viu nas tragédias sentimentais do século XVIII cujo objetivo era a educação moral da burguesia. 
A palavra “ética” é derivativa do termo grego “ethos”, que significa “caráter” e pode, desta forma ser definida como um estudo de caráter. Mas a ética não se constitui em determinar o que ou quem é certo ou errado, bom ou mal, mas sim em examinar e questionar a lógica que motiva nossas ações e que nos permite julgá-las boas ou más, certas ou erradas. E é por isso que considero a questão do trágico e a necessidade da sua reinterpretação e adaptação ao mundo pós-moderno crucial para a redefinição da potência política do teatro. 
A essência da tragédia pode ser vista não somente como a apresentação de um conflito insolúvel que retrata, como resultado, o sofrimento extremo do protagonista e que visa instigar piedade e terror no público, a fim de purificá-lo dessas emoções, como teorizou Aristóteles. Podemos encontrá-la também em sua função: ou seja, na noção de que a tragédia propõe questões que levam ao desenvolvimento ético do indivíduo. O problema com a teoria aristotélica, como já ressaltou Augusto Boal, é que ela elogia o teatro como benéfico (não só para o indivíduo como para a sociedade), porque este encoraja o treinamento das emoções de forma a conter seus excessos e cultivar a sua moderação, ou seja, seu benefício se encontra na sua capacidade apaziguadora de todo impulso de contestação às normas . Para Aristóteles, a sociedade normativa começa com o indivíduo, então por mais que a visão da ética no mundo grego esteja centrada nele, ela visa a dimensão política, mas por razões e fins bastante conservadores. 
Mas então o que se aproveita da tragédia quando se quer fazer teatro de cunho social? Creio que não o gênero, mas sim o trágico em si, precisa ser resgatado. E, acima de tudo, a instigação ética do público e o forte impacto emocional, que acredito não ser antitético ao engajamento crítico; bem pelo contrário: creio que no regime epistêmico atual (que já descrevi como um processo que deixa-nos na maioria das vezes imunes ao sofrimento alheio), só a profunda empatia pode nos fazer reagir. Mas para isto ela precisa ser instigada por uma forma de encontro que é radicalmente diferente daquela que mantém os atores num palco e o público no escuro, somente observando. E a fim de aprimorarmos a ligação entre a ética e o teatro iniciada com os gregos, precisamos, antes de mais nada, redefinir o próprio ethos (caráter) da ética. Ao invés de uma ética centrada no desenvolvimento do indivíduo (que no fundo visa o controle social), ou numa ética utilitária na qual os fins justificam os meios (que têm justificado tanta injustiça social e devastação ambiental em nome de um progresso futuro), precisamos desenvolver uma ética centrada no Outro, como teorizou o filósofo Levinas . De acordo com Nicholas Ridout: 
a performance concebida em relação com a ética pós-moderna de Levinas encoraja o espectador a não mais percebê-la como uma exploração de sua subjetividade, mas sim como uma oportunidade de viver um encontro com o outro. 

Hans-Thies Lehmann, no seu livro Teatro pós-dramático (1999), também traça uma ligação entre estética e ética, ao propor que o teatro pode intervir na estrutura de percepção mediada pela mídia, no sentido de responder ao paradigma epistemológico pós-moderno com uma “‘política de percepção’ que também poderia ser chamada de estética de responsabilidade (ou habilidade de resposta).” 
Dificilmente outro tipo de teatro pós-dramático faz esse encontro e essa estética mais tangíveis do que aquele no qual há interações tão diretas e íntimas entre ator e espectador, como o “teatro de vivência” desenvolvido pelo Ói Nóis. Na Terreira da Tribo o espectador nunca é um “voyeur”. Como ele nunca está fora da cena, passa a fazer parte da narrativa, tanto como testemunha quanto como ator coadjuvante, o que inclusive às vezes parece servir de substituto a personagens ausentes. Toda a cena possui uma atmosfera de ritual, um ambiente de troca, como se estivéssemos em volta de um contador de estórias, que ora narra o passado, ora vive o seu presente com a gente. 
Por exemplo, após revelar-nos o segredo de Corinto, de que uma das filhas do rei tinha sido sacrificada, Medeia traça paralelos entre ela e seu irmão que fora morto pela mesma razão: a sede pelo poder que faz com que os reis temam serem sucedidos. Fora, aliás, por essa razão e não por paixão a Jasão, como contou Eurípedes, que ela fugira de sua família e de sua terra, ou seja, devido aos abusos do poder que corrompiam a forma de vida de seu povo. A revelação acontece dentro de uma caverna. Nesse monólogo as duas vítimas se confundem na memória de Medeia ao passo que ela se dirige a diferentes espectadores como se estivesse falando com o espírito do falecido irmão:
Noite após noite o mar volta a espumar; noite após noite ele volta a engolir seus ossos (...) Choro finalmente (...) noite após noite os meus dedos voltam a apalpar aqueles ossos que encontrei na caverna sob o palácio, o omoplata de criança, a espinha frágil.

Fotos Pedro Isaias Lucas
Não só os ossos do irmão se confundem com os da menina encontrada na caverna, como também os espaços se sobrepõem: quando ela se refere à caverna, é como se não estivesse ali, naquele momento da enunciação, ali mesmo, com todo o público encolhido dentro daquele espaço acolhedor e sombrio ao qual somente as mulheres tinham acesso, naquele espaço útero, que no entanto era um túmulo, onde jazia o esqueleto da sacrificada e cujo chão parecia estar coberto de ossos. Em sua próxima frase ela se aproxima ainda mais de um espectador, e com olhos cheios de lágrimas, confessa a “seu irmão”: “ ‘Ifínoe’, ela é mais sua irmã do que eu alguma vez o pude ser”. E rapidamente, virando-se para um outro, ela continua a sua confissão, ainda mais próxima: “Quando acordo banhada em lágrimas, não sei se chorei por ti ou se por ela”. Essa intimidade com que a “atuadora” trava o encontro com o outro, tende a gerar uma empatia que, distinta daquela que vivemos vicariamente através do protagonista de uma peça que posiciona o espectador como observador passivo, não há de nos purgar de emoções indesejadas, nem tampouco de nossa cumplicidade. Pelo contrário, como sugerem Lehman e Ridout, ela possibilita que as questões éticas levantadas por esse tipo de relação entre o atuador e o espectador participante, sejam vistas sob a ótica da ética voltada ao outro. Ou ao menos podemos afirmar que a estética desse encontro com o trágico, que passa a ser não só a condição do outro, nutre tanto a capacidade empática quanto a ética. Principalmente quando se trata de transposições da tragicidade para o nosso momento (tais como essa), esta estética-ética possibilita a construção da dimensão utópica do trágico contemporâneo. Não porque ela forneça uma solução ao conflito insolúvel, mas sim porque incite um sentido de profunda cumplicidade e responsabilidade de buscar respostas, juntos.

Além disso, as várias temporalidades, a duração, e o aspecto metamórfico do espaço cênico também podem contribuir para o aprofundamento de trocas e de seus efeitos. Isso sem falar da riqueza e beleza dos signos cênicos, que fundindo simbolismo e surrealismo são contrapostos à materialidade e realidade de nossa convivência dentro do quadro fictício, absorvendo-nos na busca de seus múltiplos significados: a cama/árvore de onde crescem galhos, que evoca também barco, prisão, trampolim de pesadelos; a ponta dos dedos de Medeia pintados de vermelho (porque como disse Leucon: “Quem se serve das mãos tem de mergulhá-las em sangue, quer queira, quer não. Eu não quero ter mãos ensanguentadas”); os milhares de pedacinhos de cascas de coco no corredor que leva à caverna e ao seu interior, sobre os quais caminhamos temerosos, os quais produzem sons que nos dão a sensação de estarmos caminhando sobre um mar de ossos; os tapetes orientais que viram paredes, revelando e escondendo segredos da Cólquida, em contraste com as paredes minimalistas movediças de Corinto, que bloqueiam, encurralam e ameaçam os nossos corpos; a areia que é derramada de sapatos, simbolizando o corpo ausente dos que foram vítimas do holocausto; a balança gigante onde a ré Medeia é pesada (contra um pedaço de carne crua) durante seu tribunal, gestus  que traduz o valor de um corpo marcado por múltiplas marginalizações: mulher, feiticeira, estrangeira. Um corpo que já era culpado antes mesmo de virar bode expiatório para os crimes do poder patriarcal.
Agora, fenomenologicamente falando, é importante ressaltar as maneiras pelas quais a longa duração dessa peça-ritual, juntamente com a desorientação espacial que desafia a percepção do espaço como fixo e imutável age de contraponto à compressão do tempo e do espaço, que segundo David Harvey, são características do paradigma pós-moderno . Ao deslocarmo-nos através de um espaço que constantemente se modifica, abrindo e fechando-se, revelando suas passagens secretas, fazendo-nos às vezes vulneráveis, outras protegidos, conduzindo-nos para onde quer, por um lado parece nos subjugar à sua “vontade” (tal qual o herói grego é subjugado pelo destino). No entanto, por outro lado, isso nos proporciona uma tremenda liberdade. Essa sensação de liberdade paradoxalmente aciona a ética pós-moderna de Levinas, ao nos forçar a negociar nossa posição com o outro. Ou seja, ao posicionar-nos em meio às várias cenas, precisamos considerar o outro, somos interpelados por essa dinâmica a buscar um ângulo, uma perspectiva que não perturbe aos outros. Claro que talvez seja um tanto utópico de minha parte presumir esse comportamento como resultante dessas dinâmicas de corpos e espaços, mas o que posso afirmar com certeza, é que tais dinâmicas nos levam a fazer escolhas que são simultaneamente estéticas e éticas e portanto, políticas. 
Enquanto que parte dessas divagações dizem respeito ao “teatro de vivência” como um todo, se sobrepormos a essas a dimensão utópica do trágico já presente no texto de Medeia Vozes, talvez possamos então imaginar como essas estratégias cênicas possam aprofundar a sua apreensão. Mas é claro que esse efeito político-poético não é para todos. Creio que seja para aqueles que saibam sorrir no escuro. Sorrir no escuro e continuar acreditando nos significados secretos e mágicos do trágico, como o fez Rosa Luxemburgo, uma das vozes de Medeia, na cena em que ela se despede de seus filhos:
No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Nesses momentos penso em vocês. Gostaria tanto de passar-lhes essa chave mágica para que vocês percebessem sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também vocês vivam como que caminhando por um prado cheio de cores... Concedo-lhes todas as verdadeiras alegrias dos sentidos, para não me preocupar mais com vocês, para que andem na vida com um manto de estrelas protegendo-os, de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.