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Exercício Crítico sobre Caliban - A Tempestade de Augusto Boal, por Paloma Franca Amorim

Leia o Exercício Crítico de Paloma Franca Amorim sobre a obra "Caliban – A Tempestade de Augusto Boal”, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Porto Alegre/RS): http://bit.ly/Caliban-EC.  


Foto: Nathalie Assis

Com um vasto histórico de interação com a comunidade em Porto Alegre, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz chega ao Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto com o espetáculo “Caliban – Tempestade de Augusto Boal”, teatrólogo que de maneira sistemática foi apagado do panteão da história do teatro brasileiro depois da década de 80.
Suas pesquisas sobre possíveis teatralidades inclusivas é referência em vários países latino-americanos e da Europa, mas muito raramente são encontradas como bases de estudo em universidades de artes cênicas e cursos de formação. Essa deleção é justificada de maneira recorrente como resultado de um dispositivo de “seleção natural” estética, isso é, segundo o senso comum, é como se o pensamento e a obra de Boal já não interessassem a esse tempo histórico presente denominado, de maneira genérica e superficial, contemporaneidade.
Ora, a discussão tratada em “Caliban – Tempestade de Augusto Boal” refere-se a uma questão contraditória fundamental à análise da história como exercício de poder: a opressão colonialista e as técnicas perversas do capitalismo elaboradas a fim de aprisionar e reificar corpos e mentes em estruturas de exploração.
A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Tráveiz, com um elenco enorme de intérpretes/articuladores das traquitanas cênicas, leva ao espaço público, sob um formato de encenação alegórica e corpos em estado de dilatação e acrobacia, poderosa reflexão política sobre o painel da fábula. “Caliban – Tempestade de Augusto Boal”, como diz o próprio título é uma releitura da famosa dramaturgia de caráter fantástico de William Shakespeare, de acordo com a historiografia teatral, datada do século XVII.
No início da montagem do Ói Nóis Aqui Tráveiz surge uma estrutura de metal e rodas que representa uma embarcação em viagem. Essa é a maquinaria a conduzir o conjunto de espectadores ao longo da trama apresentada.


Foto: Victor Natureza

Próspero, a personagem que detém os saberes da floresta no texto de Shakespeare, na versão de Boal se torna um dos principais eixos de dominação no esquema político. A personagem se desenha bem menos esférica que a original posto que acaba constituindo-se por uma unilateralidade política operando como alicerce de oposição, grau didático de demarcador de diferença, para as figuras revolucionárias da peça reunidas na expressão do escravizado Caliban.
Escrito em 1971, o texto de Boal contextualiza a narrativa clássica de Shakespeare na América Latina, delineando acontecimentos ficcionais de desmanche das ordens totalitárias. A grande metáfora se traduz em reflexão histórica no período da ditadura militar e não diferente opera nesse momento vivido no país, depois de termos como população testemunhado episódios bastante graves do ponto de vista da política institucional brasileira. Apesar das diferenças categóricas entre o golpe civil-militar de 1964 e o golpe parlamentar de 2017, a posição anticapitalista de “Caliban – Tempestade de Augusto Boal” se endereça de modo produtivo à ponderação que parte da liberdade do estético para a planilha do político.
O grito de ordem “Somos Todos Caliban” permeia o espírito libertário da narrativa que apresenta um percurso de caráter esperançoso diante das agruras do mundo e dos corpos subalternizados que o integram como classe trabalhadora – essa nomenclatura política que agrega as intersecções de raça/etnia e gênero hoje tão caras ao debate sobre poder e dominação na América Latina.
Em “Caliban – Tempestade de Augusto Boal” todos os arranjos sociais se dão por motivos econômicos, revelando aos espectadores o fundo capitalista que dimensiona o interesse nas relações familiares, de trabalho e intersubjetivas. O vínculo entre Miranda, filha de Próspero, e Fernando, príncipe de Nápoles, é subsidiado tão somente por um jogo de necessidades políticas. O discurso do amor romântico encontrado com certa renitência nos textos de Shakespeare, é substituída na experiência do Ói Nóis sob a égide dos sistemas de aliança perspectivados pelo acúmulo de influência e de bens privados.
A praça Dom José Marcondes, no centro de Rio Preto, viveu um processo de ressignificação no dia 13 de julho, ao longo da uma hora e meia de espetáculo. A beleza com que as cenas se mobilizam diante dos olhos dos espectadores produz uma camada importante para o acesso ao conteúdo que, além de não ser simples, é extremamente violento – embora não pareça uma vez que a disputa de classe soe como realidade anacrônica no panorama da vida territorializada pela mentalidade neoliberal. “Caliban – Tempestade de Augusto Boal” convoca seu público a uma preciosa compreensão sobre armas e gritos de resistência do passado como ferramentas substanciais para a projeção de futuros mais justos.