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MEIERHOLD | Tu te moves de ti - Crítica por Valmir Santos (Parte 2)

A arte de atuar 

 MEIERHOLD | Tu te moves de ti - Crítica por Valmir Santos (Parte 2)
Fotos de Eugênio Barboza e Pedro Isaias Lucas

Um dos achados simbióticos da montagem se dá no trânsito do pensamento estético e da prática poética de Meierhold ao corpo de Paulo Flores, criador naturalmente impregnado das filosofias cênica e política da Tribo de Atuadores. Estão inscritas nele as diferentes fases acumuladas em quatro décadas e as correspondentes linhas de pesquisa amadurecidas em torno do espaço da praça ou da rua (espetáculos e intervenções ao ar livre), da vivência (interações intimistas e sensoriais na Terreira ou em locais afins adaptados) e da performatividade que se infiltra nas duas correntes anteriores e aprofundada a noção autoral sem perder de vista a coletividade de base, vide o espetáculo Viúvas: performance sobre a ausência, de 2011, e a desmontagem Evocando os mortos - poéticas da experiência, de 2013. Trabalhos que imprimiram singularidades que ora são perfeitamente aferíveis no processo que culmina na atuação de Flores e Keter.




O apreço de Meierhold por improvisação, pulsação do jogo, consciência vocal e codificação da biomecânica surge envolto na cultura dos atuadores da Tribo na qual a expressividade física é um ponto de conexão atemporal. Isso fica patente naquela cena em que o personagem encontra uma Zinaida empenhada na seleção para ingressar nos estudos com o diretor. Irradia da atuadora/da aprendiz uma gestualidade nada naturalista, de percepção maquinal para o século XX na esteira da Revolução Industrial e, aos olhos de hoje, totalmente incorporada ao imaginário das plateias mobilizadas pelas artes cênicas.

Meierhold reivindicava que se desse a ver a musculatura da face de atores e de atrizes. Na peça, diz a um veterano que a audiência tem de enxergar quando lhe cai ou lhe assenta o rosto quando um personagem é abandonado pela mulher com quem era casado por 30 anos. Ainda para ficar nos bastidores, o diretor russo tinha horror à maquiagem. Criticava o peso que se dava ao trabalho de mesa, de leitura de textos, o qual denominava “conversa com os atores”. O princípio não era o verbo, mas o corpo: é a partir dele que aflora o movimento propulsor. Alguns recursos técnicos são detalhados didaticamente na encenação, o que confere tom laboratorial. Entrar em contato com o que há por trás da elaboração artística – a usina de atuação, a carpintaria do drama, a maquinaria cênica, essas instâncias encontram-se abarcadas na montagem – pode levar as pessoas da plateia a notarem o elogio implícito, pelo iconoclasta russo, no sentido de que cheguem a uma leitura própria, a uma composição desde o lugar da “quarta parede”, como ele dizia, refletindo o que o espetáculo lhes permitisse acessar e ir além.

A preparação corporal a cargo da pesquisadora Beatriz Britto, ex-atuadora do Ói Nóis, equilibra em Flores – e acentua em Keter – os movimentos retilíneos, à maneira construtivista. Nas ocasiões em que fala mais diretamente ao público, destilando crítica mordaz e humor corrosivo, o Meierhold de Flores estabelece empatia capaz de causar desconfiança de que paira ali algum resquício de naturalismo psicológico no ar, um laivo stanislavskiano na hora de tirar ou colocar a boina, no jeito moleque de remendar o estilo de interpretar que julga convencional. Não que a emoção seja tributária exclusiva daquela linhagem. Chance para entrever ainda o artista por trás do personagem.

Em contrapartida, quando este irrompe em dor lancinante, grita indignado sob as mãos dos carrascos, Flores transborda em tensionamentos que atravessam as cordas vocais e diminuem sensivelmente a dinâmica relacional com o público. Fica em segundo plano o que já saltava de sua paleta em cores e verves mistas de Chaplin e Maiakovski na travessia de tamanho horror que foram os últimos sete meses e 14 dias de sua existência, da detenção aos tiros de fuzis, sem direito a julgamento. Repousa aqui, quem sabe, o ponto de inflexão da montagem coletiva ao sublinhar em determinadas cenas o que já se enuncia factualmente sombrio, dito e recortado por Pavlovsky e, aqui, mediado pelo conjunto do Ói Nóis que, no caso, excede nesses momentos. Talvez tenha sido determinante a autodeclarada inclinação do diretor russo à intensidade e ao caos, conforme tom confessional na carta a Tchékhov, dono de natureza diametralmente oposta.

A consciência vocal de Flores, no entanto, é um dos componentes vitais de sua identidade atuadora. Virtude que se impõe, tendo em Keter e suas variantes uma intersecção solar na intertextualidade trágica. Seja como Zinaida ou como a figura antípoda de Molotov, caracterizado com máscara, são incursões que iluminam zonas demasiado humanas de Meierhold e de sua companheira. Inclusive quando o diretor interage com o movediço amigo. Ainda desdobrada como Xamã, na abertura, e como a Imagem da Repressão, vocalizando Stálin, na reta final, Keter percorre o espaço cênico com sincronicidade de quem conhece as peças de um relógio.

Na introdução de seu livro Na cena do Dr. Dapertutto; poética e pedagogia em V.E. Meierhold, 1911 a 1916 (Editora Perspectiva: Fapesp, 2009), a diretora e pesquisadora Maria Thais, da Companhia Teatro Balagan (SP), discorre sobre o projeto estético e poético do diretor, os processos de composição da cena e de formação do ator estreitamente ligados às práticas pedagógicas. “O ator meierholdiano só pode ser compreendido no contexto da sua cena, e, do mesmo modo, a sua cena se configura somente a partir dos seus elementos constitutivos, que guardam, apesar de tudo, sua independência. A permanente dualidade conjuga liberdade e obediência, e o rigor, sob o qual submete a formação do ator, não exclui a perspectiva de ser a cena o centro principal do aprendizado, daqueles que fazem e daqueles que veem”, afirma.




O aparato cênico construtivista resulta um trunfo dramatúrgico no trabalho mais recente da Tribo. Os diferentes níveis, rampas e mecanismos giratórios condizem com o pensamento meierholdiano a sustentar a forma em arte como indissociável de seu conteúdo. Os atuadores Eugênio Barboza e Clélio Cardoso adaptaram a cenografia criada originalmente por Liubóv Popóva para o espetáculo O corno magnífico, assinado pelo diretor em 1922. Plasticidades e topografias ornam absolutamente com ruídos ou com ludismos aparentemente implausíveis, transportando o imaginário do espectador para uma experiência labiríntica feito os penetráveis do artista plástico Hélio Oiticica. O dispositivo não é apenas observável, ele preenche as relações, é efetivamente vivenciado pela dupla de atuantes.

Outra janela aberta com igual relevância é a da projeção audiovisual que lembra da admiração crítica que Meierhold nutria por Nikolai Gógol. Cita imagens da sua montagem de O inspetor geral, em1924, e o quanto extraiu de essencial do texto na transposição para o palco. Disposição que o fez levando-se em conta, em seu juízo, a falta de postura ética do genial autor subserviente a quem detinha o poder, o czar Nicolau I, e fazia questão de interferir na arte e na cultura – a peça fora escrita 88 anos antes, em 1836.

Em um dos fragmentos que margearam Variaciones Meierhold, não incluído pelos artistas brasileiros, Pavlovsky anotou que certa vez Zinaida declarou sua admiração pelos desbordamentos criativos de seu amado. “A crença de que o teatro sempre deve ser subversivo”. Um jeito de lidar com arte e sociedade na tentativa de equalizar convicções marxistas, ideais libertários e anarquistas em moto-contínuo próximo do encarado por Paulo Flores na contemporaneidade, com o agravante da voga neoliberal ditando as regras no capitalismo tardio.

Numa seleta de artigos e notas acerca da obra cênica e teórica do diretor russo, intitulada Sobre o teatro (1913), com tradução de Maria Thais e Roberto Mallet, mais colaboração de Gabriela Itocazzo, lemos a seguinte epígrafe do poeta grego Even D’Ascalon: “Mesmo se me corróis até a raiz, ainda assim produziria frutos suficientes para serem derramados em libações sobre a cabeça, ó bode, quando fores sacrificado”.

Imagem propícia para evocar, mais uma vez, o discurso proferido no congresso de diretores. Não por acaso, corresponde às cenas finais da peça. Em prosa expositiva, Meierhold reage à covardia daqueles que frequentaram suas aulas e seu teatro experimental, sendo a última sala, batizada com seu nome, fechada no ano anterior, em 1938. Na sustentação póstuma escrita por Pavlovsky, ele encontra nos jovens das últimas fileiras aliados ante o desespero, por não se furtaram de sua mirada, de seu chamado ao futuro, como demanda no “fervor revolucionário do meu teatro”. 

Na biografia lançada no ano passado, Paulo Flores: um teatro com pedras nas veias (Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, nono volume da série Gaúchos em Cena), de autoria do jornalista Roger Lerina, o atuador compartilha da mesma âncora para confrontar a realidade brasileira: “Qualquer pensamento mais humanista vê esses últimos anos como um período obscuro, que a gente não sabe o que vai ser o futuro. Porque o Ói Nóis, que nasceu ainda na ditadura militar, sempre apontava que existiria uma progressão de ações, de entendimento, de conscientização social que chegaria a uma democracia de fato. Na peça, Meierhold está condenado à morte, mas diz que continuará no olhar daqueles jovens do congresso de teatro. A última fala do texto de Pavlovsky remete a uma esperança de transformação mesmo em um momento muito sombrio, e o trabalho do Ói Nóis está dentro disso. Eu acho que é um momento difícil, muito triste. Eu não pensei que ia viver isso”.

E nas primeiras linhas do artigo En busca de la unidad perdida: la izquierda y la juventud, publicado na revista Zona Abierta, (número 17, 1992), cerca de 12 anos antes de escrever sobre a vida e a obra de Meierhold, Eduardo Pavlovsky anotou as seguintes palavras que seguem ecoando pela pertinência: “Creio que devemos assumir o peso da grande responsabilidade histórica. O fracasso do socialismo real e o auge do projeto neoliberal conservador – com seus êxitos eleitoreiros – causaram efeitos que não parecem fáceis de avaliar na esquerda argentina. Também é certo que existe uma crise de representatividade que atravessa hoje os campos da ciência, da arte, da política e das ideologias. Tudo está em crise e questionamento. Definir e diagnosticar situações requer assumir a responsabilidade de integrar diferentes níveis de complexidade e reduzir o predomínio do pensamento onipotente e totalizador”, argumentou “Tato”, em tradução nossa.

.:. Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena.