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Artigo: livro e documentário recuperam ousadias do Ói Nóis Aqui Traveiz

Por Valmir Santos
Jornalista, crítico e pesquisador teatral
texto publicado no cultura Zero hora em 1 de fevereiro de 2014


Quando os mitos e os rituais encontram-se sedimentados como ato criativo numa biografia de 35 anos, seu criador também é convertido, simbolicamente, em fonte primordial de outros mitos e rituais transmitidos às gerações de artistas e de públicos com os quais conviveu. Ou seja, gera uma tradição. Em sua antológica fricção poética com a realidade, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz sorveu a origem do mundo, palmilhou a natureza dos céus aos baixios, esculpiu em cena deuses, homens e heróis em suas falências e potências. E sublinhou injustiças, algumas ainda estanques, que por si mesmas ficariam emolduradas no histórico cultural não fosse a disposição permanente do grupo para fazer valer seu projeto estético.

Evocar essa cosmogonia à luz do um terço do percurso do coletivo que este autor acompanha desde o início da década passada ajuda a ponderar aspectos mais subjetivos. E oportunamente na semana dos lançamentos simultâneos do livro Poéticas de Ousadia e Ruptura, organizado pelos atuadores Paulo Flores e Tânia Farias, e do documentário Raízes do Teatro, do cineasta Pedro Isaias Lucas, transcorridos na noite da última quarta-feira na Terreira da Tribo.

Tempo e espaço de sustentação estética têm a ver com princípios éticos, principalmente sob as angulações sociais e políticas impressas nos espetáculos do Ói Nóis. Sua gênese no final da década de 1970 só ganharia sentido se convertida em aguerrido manifesto à vida diante da ditadura militar. E assim o foi, com direito ao amor contracultural. Brandindo arte e indignação, como conviria ao poeta libertário da mais distante aldeia. Postura que não cessou após gradativo restabelecimento da democracia, em meados da década seguinte. A consciência crítica não saiu de pauta, vide seu eco surpreendente nos protestos de sete meses atrás na maioria dos Estados.

Lutas longevas não corrompem projetos poéticos, aprendemos. Sebastião Salgado diz que tudo que fotografa é mediado pelas lentes de sua história e de sua ideologia. No livro Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística (Annablume, 1998), a autora Cecilia Almeida Salles, pesquisadora da crítica genética, afirma que o objetivo final e supremo de todo verdadeiro artista, seja qual for o seu particular ramo da arte, é "o desejo de expressar-se livre e completamente".



Foto: Cláudio Etges
Essa sentença sumária serve a uma morfologia do grupo. Pelo menos, e com toda segurança, às gerações que o acompanham desde Aos que Virão Depois de Nós – Kassandra in Process (2002). Em nosso ponto de vista, a encenação da tragédia da profetisa cujo apelo pacifista os senhores da guerra ignoram solenemente atinge graus inovadores em termos de recursos e procedimentos até então presentes na linha do Teatro de Vivência em que o público itinerante torna-se coautor pari passu aos atuadores.




Foto: Pedro Isaias Lucas
Idem para O Amargo Santo da Purificação (2008), uma inspirada transposição da biografia do guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911 – 1969) para o espaço público, em que o conceito de Teatro de Rua, outra matriz investigativa do núcleo, é ampliado territorial e formalmente com forte impacto audiovisual e sem barateamento dos efeitos. 
Já Viúvas – Performance sobre a Ausência (2011) abriu um novo flanco no manejo de linguagens. A ocupação da Ilha das Pedras Brancas, no Guaíba, nas ruínas do edifício para onde eram levados presos comuns e políticos instaurou uma comoção no modo como a história escrita pelo chileno Ariel Dorfman e pelo norte-americano Tony Kushner foi apropriada pelo Ói Nois e circunscreveu as memórias da tortura em Porto Alegre durante o regime militar. A escala monumental da produção envolveu barco para transportar o público, locação de um gerador de luz e horas de trabalho braçal para capinar e limpar o local. Jornada para constituir capítulo à parte e, no caso da Tribo, coerente pelos mutirões de praxe.



Foto: Cláudio Etges
As três montagens evidenciaram a qualidade das atuações e das costuras dramatúrgicas em narrativa épica. O empenho pela palavra encontra dialogia correspondente nos desenhos cenográficos, sonoros, vocais e de luz. Há um senso de construção de unidade que é mais comum em superproduções musicais, por exemplo, do que na experiência de um grupo que equaliza os conceitos de beleza e precariedade em prol de sua estética e que considera profundamente a formação cumulativa de seus integrantes. Essa gente que parece trazer esculpida na fisionomia o dístico de Rodin: "O artista deveria acreditar em seus olhos".