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Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade!
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz - 40 Anos!
“A aventura da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz começou a ser gestada no final de 1977 com o encontro de jovens artistas descontentes com o teatro que se fazia em Porto Alegre e no país. O ano tinha sido marcado por uma grande ebulição social com a volta das grandes manifestações de rua exigindo liberdades democráticas e anistia aos presos e exilados políticos.
Vivia-se ainda os anos de intolerância e repressão policial da ditadura civil-militar que se instalara no Brasil em abril de 1964. O núcleo que deu origem ao Ói Nóis Aqui Traveiz queria um teatro comprometido com o momento político vivido no país. O grupo nascia com a ideia de um teatro concebido fora dos padrões convencionais. Estruturado como um coletivo autônomo desejando viver e expressar suas ideias através do teatro. Influenciado pelos movimentos de vanguarda e principalmente pelo teatro revolucionário que acontecia em diferentes partes do mundo, o Ói Nóis Aqui Traveiz começou a desenvolver a sua expressão cênica a partir da criação coletiva, do contato direto entre atores e espectadores e do uso do corpo em oposição ao primado da palavra. O nome em grafia propositadamente iletrada era um aviso de que o grupo se propunha a tomar atitudes inusitadas e contestadoras.”
Para relembrar uma parte desta história, a Tribo todas as quinta-feiras vai publicar no seu blog/site entrevistas, críticas, reportagens e manifestos que acompanharam a sua trajetória.
Em vésperas de completar 40 anos, em plena atividade artística e cidadã, estaremos revisitando nossos próprios arquivos, abrindo frestas e janelas de memória, para que através delas possamos olhar para trás e de asas e olhos abertos, caminhar para frente, reunindo forças para mais uma vez, alçar vôo. Evoemos!
E para abrir os caminhos, compartilhamos hoje parte de uma entrevista realizada com o atuador/fundador da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, Paulo Flores.
Entrevista com Paulo Flores
Originalmente publicada na revista Sextante/Resistência em 2016.
Foto João Matos - JC |
Paulo Flores é um dos grandes nomes que continua trabalhando através de um ideal muito claro: a utilização do teatro como forma de resistência artística e política. Fundador do grupo de teatro mais antigo do Rio Grande do Sul, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, continua levando para a população o pensamento crítico em seu teatro de vivência - sem divisão de palco e platéia - e o teatro de rua. Com o lema "Utopia, Paixão e Resistência", Paulo Flores e a Tribo mudaram o fazer teatral nos anos 70 e até hoje utilizam da arte como uma grande experiência ritualística que busca trazer ao público, por meio de sensações reflexivas, uma mudança pessoal e social.
Júlio Kaczam
• Qual foi seu primeiro contato com o teatro?
Eu me lembro de ter assistido “A Bruxinha que era boa”, da Maria Clara Machado, quando tinha 6 anos. Depois assisti durante a infância teatro de fantoches na Biblioteca Pública. Quando era criança brinquei muito de “fazer” teatro, muito influenciado pelos filmes que assistia nos cinemas e na televisão. Na adolescência junto com amigos e primos “encenamos” adaptações de filmes e novelas, como “Bonnie & Clyde” e “A Ponte dos Suspiros” para uma platéia formada de parentes. Só começo a assistir teatro com freqüência aos dezesseis anos. Alguns espetáculos vindos de Rio-São Paulo, e principalmente as peças do Teatro de Arena de Porto Alegre, que para mim vão ser uma revelação. A força que o teatro pode ter em sensibilizar o espectador para a reflexão dos problemas sociais. Esse teatro comprometido com a crítica ao mundo em que vivíamos vai ser determinante na minha decisão em escolher o teatro como forma de expressão.
• Quem ainda são os resistentes em busca de uma arte de transformação social?
Em todos os lugares do mundo uma arte comprometida com a transformação resiste. Para ficar só no campo da expressão teatral e no Brasil, podemos encontrar nas diversas regiões do país grupos de teatro investigando novas formas de expressão e desenvolvimento do ator, se contrapondo a estética imposta pelo colonialismo, trabalhando temáticas sociais com questionamentos críticos da realidade Para citar dois mestres do teatro revolucionário no nosso país: José Celso Martinez Correa do Teatro Oficina de São Paulo e Amir Haddad do Grupo Tá Na Rua do Rio de Janeiro.
• Você acredita que a resistência está atrelada a busca de uma re-existência?
Acredito que toda resistência traz em si uma re-existência. Porque ao manter os valores éticos que faz o ser humano continuar lutando por liberdade e justiça social, ele precisa se projetar para o futuro. É preciso uma participação cada vez maior do indivíduo em direção à construção de um novo tipo de sociedade.
• Com a crescente tecnologia e os novos meios de comunicação, muito se discute no jornalismo o fim do jornal impresso. Assim como se discutiu o fim do rádio com a chegada da televisão. Você acredita que estamos em uma crise do teatro? É possível que ele seja extinto pela televisão e pelo cinema?
Num mundo que nos sufoca de mensagens unidirecionais, o teatro resiste e oferece-se hoje como o lugar único da comunicação imediata. Todos esses canais artificiais de comunicação são “distanciadores”, cada vez mais, o ato comunicativo separa em vez de reunir, e a comunicação eletrônica aliena os seres humanos que cada vez mais se sentem isolados uns dos outros. Acredito que só o teatro, enquanto expressão artística poderá restituir ao homem à função natural de comunicar. A essência do teatro é reunir atores e espectadores para fazê-los partilhar de uma experiência.
• Você já afirmou que "não se cristaliza uma maneira de fazer teatro, jamais. Esta arte ancestral, perseguida pelo fantasma da crise desde antanho, está condenada a reinventar-se em meio aos encantos e solavancos". Uma crise do teatro serve para surgir uma nova percepção de cultura?
Num mundo cada vez mais virtual onde os meios de informação em lugar de aproximarem realmente os cidadãos do mundo só agravam e difundem uma forma nova de solidão, acredito que só o teatro poderá ficar como o lugar privilegiado da anti-solidão, da comunicabilidade direta, do diálogo, do isolamento quebrado. Só no teatro os seres humanos reaprenderão a conhecer-se. Esse é o seu espaço no horizonte do futuro.
Foto Cláudio Etges |
Todo artista dentro do sistema capitalista vive em “perigo” de ser capturado e cooptado pelo consumismo. Neste contexto cabe ao teatro então celebrar ou transgredir os mitos desta sociedade, problematizando o presente, perspectivando o passado, antecipando o futuro. O teatro pode ser o motor e o laboratório social de uma cultura em mutação e de uma comunidade sempre renovada. Constituir uma experiência estética capaz de conduzir o ser humano a viver de uma maneira mais plena e mais autêntica.
• No momento em que na sociedade tudo se torna objeto de consumo, inclusive o ser humano, que deixou de ser gente, cidadão, para se transformar em cliente e consumidor, qual a maior dificuldade de fazer um teatro transgressor que vai em oposição a essa ideia proporcionada pelo sistema capitalista?
Acreditando no teatro como um modo de vida, o Ói Nóis Aqui Traveiz desde a origem dissemina idéias e práticas coletivas, de autonomia e liberdade, compartilhando a experiência de convivência e de laboratório teatral. Que através do teatro podemos construir um ser humano solidário, consciente, aberto ao outro. E é em busca desta idéia que adotamos o termo “Tribo de Atuadores”, que sugere uma nova sociedade, baseada na vivência em comunidade e na valorização das relações diretas e da responsabilidade individual. Este trabalho desenvolve dentro do grupo uma noção de ator. Que primeiro é preciso ter consciência do que se quer fazer. Não é mais o ator para ser “estrela”, para querer chegar à novela da TV Globo. Por isso nós usamos o termo “atuador”. Porque dentro do Ói Nóis se procura desenvolver no artista, além de ator, ser um ativista político. Não um militante partidário, mas político no sentido maior, como agente social, uma pessoa descontente com que existe aí, queira transformar o seu dia-a-dia e transformar a sociedade em que vive. Isso é um processo que encontra várias dificuldades, algumas quase intransponíveis, mas que a trajetória do Ói Nóis Aqui Traveiz tem mostrado que não é impossível. Mesmo se vivendo numa sociedade extremamente consumista, de valores individualistas, de cinismo exacerbado, de “cada um por si”, o Ói Nóis com a sua criação e organização se coloca na contramão deste pensamento dominante. Procurando um teatro que esteja engajado com o momento em que se vive, na busca da transformação da sociedade.
• O teatro do Ói Nóis foi um dos alvos da ditadura militar no Brasil. Hoje, como é feita a censura aos meios artísticos?
Hoje a censura é principalmente econômica. Mas nos anos 80 além da censura e da repressão policial os grupos de teatro viviam também uma situação de penúria econômica. Hoje estas dificuldades econômicas continuam para a existência de grupos de teatro que mantenham independência em relação ao mercado e às estruturas de dominação. Essas dificuldades vão desde o espaço físico para o grupo desenvolver o seu trabalho e ter continuidade até verbas de fomento para sua criação artística e circulação dos seus espetáculos.
• Qual a maior diferença entre fazer teatro nos anos 80 e hoje?
Para o Ói Nóis Aqui Traveiz os anos 80 foi o momento de descoberta, de desenvolver as linguagens da Tribo: o teatro de rua e o teatro de vivência. Tudo era muito novo para nós criadores como também para o nosso público. Hoje com essas linguagens definidas o desafio é como não cristalizar as formas e estar sempre atento ao público de hoje.
• Qual a principal diferença do público hoje pro dos anos 80? É mais difícil conquistar o estado de atenção no espectador contemporâneo?
Para esse público de hoje que na sua grande maioria passa todo tempo conectado ao mundo virtual o teatro do Ói Nóis Aqui Traveiz ganhou uma dimensão maior. Mergulhados num ambiente saturado de informação eletrônica cada vez mais nos sentimos desligados da materialidade dos fatos, do real objetivo, do acontecimento palpável. O teatro do Ói Nóis ao propor uma vivência, onde o espectador está dentro dos acontecimentos, podemos vislumbrar o teatro como espaço de um encontro autêntico. Acredito que só o teatro ficará como lugar da desalienação, lugar onde o ser humano redescobrirá essa unidade perdida do pensamento com a ação, lugar onde se refará a potência criadora do gesto. Lugar onde o ser humano se reencontrará com o ser humano, olhos nos olhos, carne com carne.
Foto: Pedro Isaias Lucas |
• Uma das críticas que o Ói Nóis recebe é o de que, por utilizar uma linguagem própria e poética, usa de diversas referências que o público em geral, leigo, não conseguiria compreender. Como lidar com o fato de que o público em geral está inserido nessa cultura que o Ói Nóis justamente pretende romper?
Este processo de reprimir e instrumentalizar a imaginação, proveniente de uma política cultural das sociedades capitalistas, levou Heiner Müller a dizer que a tarefa política da arte seria mobilizar a imaginação do espectador. Acredito que o papel do teatro é desalienar o espectador dessa cultura massificante. O teatro do Ói Nóis Aqui Traveiz através de uma linguagem poética que envolve todos os sentidos do espectador busca liberar os automatismo da percepção e os hábitos perceptivos já cristalizados. Concordo quando Müller diz que o ato cognoscitivo vem a posteriori, precedido pela experiência estética, por algo que não pode ser definido de imediato, mas que só assim se transforma em experiência durável.
continua...
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