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Crítica Medeia Vozes

A crítica que compartilhamos abaixo foi postada originalmente no blog Bacante, e se refere ao espetáculo Medeia Vozes, que em outubro de 2013 sediou uma temporada no espaço do grupo Vento Forte em São Paulo. 

Medeia Vozes vem aí!!! Em breve estaremos divulgando os pontos de venda para compra do ingresso em Porto Alegre.


Das possíveis reparações históricas, inclusive na ficção
Por Maurício Alcântara

Existem muitas formas possíveis (e, em minha opinião, necessárias) para fazer um registro da apresentação de Medeia Vozes, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.
A primeira delas, mais fácil, diz respeito às características perceptíveis por qualquer um que, ainda que pela primeira vez, tenha contato com uma produção do Ói Nóis: a exuberância estética, os figurinos e adereços feitos com tantas nuances, texturas e materiais que é fácil se pegar observando detalhes e pensando em como foram feitos; a parafernália megalomaníaca (com direito a torres de metal, bolas de fogo, toneladas de areia, árvores inteiras, réplicas de pássaros gigantes empalhados), a apropriação impecável do espaço do Teatro Ventoforte (o que torna quase inacreditável que aquela montagem não foi concebida originalmente para aquele espaço). Tem ainda os cheiros todos, o gosto do pão servido em cena, os diferentes ângulos como vemos cada passagem. Poderia ainda falar do registro vocal, da música que invade todos os ambientes, os instrumentos estranhões, os cantos em diversas línguas. Ou ainda do estado de atenção que a produção instaura no público, que a todo momento é surpreendido por cenas que se descortinam em lugares inesperados, espaços que se reconfiguram de forma a torná-los irreconhecíveis entre uma cena e outra, personagens que invadem a cena a qualquer momento, músicos que surgem de todos os cantos.

Esse caráter descritivo ganha mais relevância se consideramos o processo de produção coletiva do grupo, em que todos os atuadores são, ao mesmo tempo, atores, cenógrafos, contra-regras, figurinistas, músicos. Os traços de uma longa pesquisa se materializam em cada aspecto perceptível da apresentação, eliminando praticamente qualquer lacuna entre pesquisa, produção e linguagem – e isso ganha traços ainda mais notáveis para quem já tenha visto outras montagens do grupo, ou que tenha algum conhecimento/contato do processo produtivo.

A leitura da forma da montagem poderia fazer-me incorrer num juízo de valor pessoal acerca da linguagem, do registro de interpretação que por vezes parece carregar tiques excessivos, ou ainda questionar a qual público se dirige tal linguagem, que não abre concessões. Só pude escrever esse texto porque vi a montagem duas vezes – as imagens e fragmentos de entendimento habitaram minha cabeça por uma semana inteira, e felizmente consegui a última senha disponível para o último dia de apresentação em São Paulo para terminar de montar esse quebra-cabeça mental. É tamanha intensidade de texto, de acontecimentos e informações que, na primeira vez, a minha sensação (e dos amigos todos que estavam comigo) era a de um certo atordoamento mental.

Sem pesquisar a fundo e sem conversar com o grupo, soa-me como uma produção que conversa muito mais com artistas, pensadores, acadêmicos e intelectuais do que a um público geral. Pode ser que isso parta de um paternalismo elitista de minha parte, de achar que um público menos “iniciado” talvez não se envolva como eu me envolvi na obra. Talvez eu esteja fazendo essa análise à luz do público que vi nas duas semanas de temporada em São Paulo: envolvidos com teatro em geral – pesquisadores acadêmicos, atores, diretores, estudantes de teatro, pessoas que, de alguma forma, sabiam da existência do Ói Nóis ao ponto de fazer questão de ficar mais de 5 horas para ver uma peça (entre o tempo de espera na fila e o tempo da apresentação, de 3h30 sem intervalos). Mas também é possível que eu desconheça o público de Porto Alegre a quem o espetáculo se dirige, ou o público que é impactado pelas diversas outras atividades que o Ói Nóis realiza em sua Terreira e nos entornos da capital gaúcha.

Acontece que tudo isso que relatei até o momento ainda circunscreve a crítica da peça ao universo que diz respeito somente ao teatro. Qualidade das cenas, complexidade e modos de produção, segmentação de públicos e questões de linguagem ajudam a estabelecer no tempo e espaço as condições de realização das apresentações, mas só servem para classificar a produção dentro de critérios rígidos e formais. Menciono tudo isso porque acredito que esse registro deva ser associado à leitura do espetáculo, mas o que me interessa mais é o conteúdo que assume a forma dessa produção toda.

É comum encontrarmos montagens que se apropriam dos clássicos gregos para estabelecer metáforas pertinentes para questões políticas e sociais da contemporaneidade – juntando a força que a arte pode ter de propor uma reflexão acerca de seu tempo, com a potência com que muitas obras da antiguidade retratam questões acerca da vida em sociedade, como discussões acerca da liberdade, da soberania, do direito, da luta contra a tirania e o autoritarismo, dos sentidos da democracia.

Foto: Pedro Isaias Lucas
Medeia Vozes resgata a novela homônima da alemã Christa Wolf que revive o mito de Medeia para levantar uma subversão do mito que conhecemos sobretudo pela obra de Eurípedes. A hipótese é poderosa: e se a Medeia que conhecemos, fratricida e infanticida, não for a Medeia real, mas uma narrativa falsa que distorce a personagem de forma a encobrir os verdadeiros assassinos de seus irmãos, propagando versões falsas que servem ao interesse de quem tem mais poder para perpetuar sua versão dos fatos? Que fatos são mais convincentes, a mulher que mata seus filhos, ou a mulher que tem seus filhos assassinados para encobrir outros fatos?

A provocação é ainda maior: talvez até na ficção sejamos simpáticos às versões propagadas por aqueles que tinham mais poder para perpetuar sua versão dos fatos. Em determinado momento da peça, há uma fala que ecoa: nenhuma mentira é ruim o suficiente, desde que haja pessoas dispostas a acreditar nelas.

Partindo desta premissa, a montagem apresenta-nos uma heroína trágica que, ao contrário do mito “original”, jamais se vinga. Uma mulher pacífica, cuja única arma é a busca pela verdade e pela justiça – e que, mesmo quando é vítima da mentira e da injustiça, jamais se levanta contra seus algozes. Mesmo sendo inofensiva (ao contrário da assassina do mito), é tão perigosa do ponto de vista das ideias que é necessário imputar-lhe defeitos, crimes e más famas. As técnicas usadas pelos inimigos ancoram-se em pré-conceitos que, quando enraizados na sociedade, contribuem para assegurar a manutenção do poder nas mãos daqueles que já o têm. Na impossibilidade de Medeia ser subjugada por pertencer a uma classe inferior (por ser esposa do poderoso Jasão), ela é subjugada como mulher (impossibilitada de estar à altura dos homens) e taxada como feiticeira – com o suporte da xenofobia, outro marcador social que traça uma diferença entre ela, estrangeira, e o povo de Corinto. Nada como uma alegação de que o inimigo “não é um de nós”, para atribuir-lhe, com facilidade, qualquer defeito ou acusação desejados.

Nessa tentativa de construir uma contra-narrativa que sirva de contrapeso e consiga imprimir um outro ponto de vista à versão dos fatos criada pelos poderosos sedentos pela manutenção de seu poder, a trupe gaúcha remete a outras tantas mulheres que, assim como a Medeia protagonista, também carregaram até o fim de suas vidas o fardo de, apesar de sua resistência, serem retratadas como o oposto do que são. Essas Medeias várias que aparecem ao longo da peça evidenciam o quanto as narrativas, as construções simbólicas, as relações de poder e as consequências práticas e trágicas de nossas culturas contemporâneas sempre correm o risco de propagar a manutenção de forças desiguais de poder.

A Medeia do Ói Nóis é mais do que um estandarte da luta contra as relações de desigualdade de gênero. É também um grande monumento para a luta pela construção de uma história menos universal e mais polifônica, trazendo junto com cada voz e cada ponto de vista, uma possibilidade de narrativa que possa por em cheque as narrativas dominantes – e é por isso que tal montagem se faz tão necessária.

2.400 anos entre a Medeia culpada de Eurípedes e a inocente de Christa Wolf

Texto postado originalmente no Blog Bacante em 26 de outubro de 2013.