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Medeia Vozes vem aí!


Na publicação desta semana, compartilhamos um artigo de Natasha Centenaro, que foi apresentado no I Congresso de Novas Narrativas, realizado na ECA - USP em junho de 2015.

Em vésperas de celebrar 40 anos de trajetória, viemos a público informar que Medeia Vozes - uma das maiores obras do Teatro Brasileiro, da última década - entrará em cartaz em Porto Alegre nos meses de março e abril/2018. Medeia Vozes vem aí!!!

De feiticeira grega às estrangeiras contemporâneas: Medeia vozes e a discussão de gênero e memória
Natasha Centenaro (PUCRS)



Resumo: Medéia: a infanticida, a fraticida, a bárbara, a estrangeira. Da diáspora política ao pathos indissolúvel, da hybris aos assassínios. O mito de Medéia é anterior às tragédias da Antiguidade Clássica. Porém, a versão que continua (re)conhecida e divulgada é a do tragediógrafo grego Eurípides (século V a.C.): a bárbara feiticeira da Cólquida. Quem é Medéia? Qual o tom da sua voz? Na busca por encontrar, ressignificar e expressar a voz calada dessa personagem, sobretudo, estrangeira, é que a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre (RS) se dedicou a pesquisar, produzir e encenar, dentro do projeto Raízes do teatro, um espetáculo baseado no teatro de vivência (do teatro ritualístico de Antonin Artaud) e no teatro político de Hans-Thies Lehmann. A partir do romance de Christa Wolf, Medeia Vozes é uma criação coletiva, uma “celebração” dessas múltiplas vozes de mulheres refugiadas, exploradas, abusadas, torturadas, oprimidas, ao ressoar as Medéias contemporâneas: a indiana Phoolan Devi, as alemãs Rosa Luxemburgo e Ulrike Meinholf, a somali Waris Dirie e a boliviana Domitila Chungara. Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo tecer considerações sobre a peça Medeia Vozes, tendo como referência o roteiro de cenas (aspectos literários – dramatúrgicos e cênicos), além de examinar essa figura mítica, refletir acerca da condição de gênero (a partir da teoria de Judith Butler), da estrangeridade (estrangeiro conforme Julia Kristeva) e da perspectiva da memória – memória individual e coletiva (segundo Beatriz Sarlo e Maurice Halbwachs).


1. Introdução: quem é Medéia, qual o tom de sua voz?

A personagem Medéia não foi uma criação do tragediógrafo grego Eurípides. Mas, foi a partir de uma combinação de lendas e mitos cuja adaptação resultou na construção de um arquétipo único na literatura grega, passível de imediato reconhecimento e sinônimo de uma paixão desmedida, a qual se transformou em ira e ódio, acarretando no infanticídio dos próprios filhos. Harry Rodrigues Bellomo (In. FLORES, 2005) conceituou o mito, na Antiguidade, como uma história real de um passado remoto que se tornou, no período cristão, uma fantasia, um relato irreal, que servia apenas de inspiração para a literatura e as artes.
Os mitos, desse modo, podem ser descritos como uma história irreal, contudo buscam explicar um problema real. “Podemos afirmar que o mito é a forma mais antiga da literatura, geralmente oral, que estabelece a base da moralidade, das relações sociais e da identidade de um povo” (BELLOMO, In. FLORES, 2005, p. 29). Os mitos estão classificados na seguinte tipologia: Teológicos – mitos que explicam a origem dos deuses; Antropológicos – os que explicam a origem da humanidade; Cosmogônicos – explicam a origem do cosmo; Cosmológicos – a origem da natureza; Etiológicos – explicam e determinam comportamentos.
“O teatro grego, tanto as tragédias como as comédias, exploram os mitos como tema de seus enredos, mantendo os mitos como expressão dos sentimentos e desejos dos seres humanos” (Idem. Ibidem, p. 38).

Dentre essas modalidades, Medéia faz parte dos mitos etiológicos, que explicam comportamentos, nesse caso, moralmente não-aceitos ou negativos, desde a traição de Jasão, que desencadeou a vingança da mulher, às próprias atitudes desta, em um crime irreparável. 
Conforme Flores (2005), a personagem é única, considerando o conjunto  das mulheres trágicas de Eurípides, que luta por seu amor, sendo a mais humana de todas as heroínas e confluindo ao paradigma do arquétipo da mulher que se vingou, por ter tido seu amor negado, e rompeu, por conseguinte, com todos os valores sociais da época. Está categorizada de acordo com o arquétipo de Pandora: Medéia pertence ao arquétipo de Pandora, a mulher bela que traz a desgraça aos homens. Medéia é uma bela mulher, portanto, de acordo com o imaginário grego, deveria ser boa, mas é traiçoeira, vingativa e leva a desgraça ao lar de seu pai e depois ao seu próprio lar. Este paradoxo faz parte da figura de Pandora, só que Medéia não deixa a esperança no fundo do jarro, ao ser possuída pela hybris, a violência pela paixão quando Jasão a troca por uma mulher mais nova a fim de assumir o trono, ela não vacila em sacrificar seus filhos como supremo ato de vingança, ao terminar com a descendência do marido, que está velho e não pode mais ter filhos (FLORES, 2005, p. 47 - 48).

O mito de Medéia é constituído pelo entrelaçamento de outros dois mitos ou lendas da mitologia grega, o Velocino de Ouro e a expedição dos Argonautas. Como toda a lenda, proveniente da tradição oral, o mito de Medéia e de Jasão sofreu inúmeras mudanças. As diferentes facetas da figura de Medéia ressoaram um passado de cultos distantes, mesmo em relação à época clássica. Com isso, o mito acabava por se tornar um componente da tradição literária, e não mais uma realidade viva. Em uma das versões mais antigas apresentadas por Olga Rinne (1988), Medéia seria a rainha de Corinto e os coríntios, descontentes com a dominação da poderosa rainha, teriam assassinado os seus filhos. Em outra, de autoria de Heródoto, Medéia não teria abandonado voluntariamente sua pátria, mas, pelo contrário, teria sido raptada pelos helenos numa expedição de saque. Existiram inúmeras discussões acerca da culpa da morte de Apsirto, o irmão de Medéia, e de Pélias, tio de Jasão, pois, em determinada versão, ela é absolvida dessas mortes que, teriam sido na verdade, provocadas por Jasão em, em outra, ela é a causadora. O certo é que foi Eurípides o primeiro a imputar-lhe o assassinato
dos próprios filhos, característica que passou a definir Medéia daquele momento em diante.

Tudo indica que a Medéia das tradições helênicas era uma personagem muito mais importante e poderosa, acima de tudo, muitíssimo mais positiva do que a que conhecemos por Eurípides. O nome Medéia (em grego Mideia) significa a do bom conselho, e, em todas as tradições, ela é apresentada como conhecedora da arte de curar e dotada de inteligência superior. Dizia-se que tinha o poder de restaura a vida e de rejuvenescer e que, com um caldeirão mágico, rejuvenescera o velho pai de
Jasão e, mais tarde, o próprio Jasão. (...) Essa imagem é o reflexo de uma versão em que a história do casal mítico tem um final feliz: Medéia, que é imortal, rejuvenesce o esposo envelhecido (RINNE, 1988, p. 10).

Medéia se transformou de Grande Deusa, cuja imagem estava associada às fases da Lua, com caráter imortal, no período em que a cultura grega ainda era matriarcal, em uma simples mortal, bárbara e estrangeira, na transição para o patriarcalismo. Essa imagem ambivalente do rebaixamento de deusa da cura e da sabedoria para a feiticeira poderosa, inteligente e ameaçadora, e, mais adiante, para a esposa ciumenta e infanticida, significa a perda da feminilidade, desvalorizada, vista como demoníaca, à medida que o patriarcado se instaurava. Desse modo, as características que integravam à sua força, como o orgulho, o espírito de resistência e o poder de decisão, apenas atuavam no inconsciente da mulher que a sociedade projetou.

2. Medeia vozes e a(s) voz(es) da(s) mulher(es) estrangeira(s) da Tribo de Atuadores: por
uma discussão de gênero e memória

A peça Medeia vozes estreou em setembro de 2013 no Festival Internacional de Artes Cênicas Porto Alegre em Cena, na capital gaúcha, e integra o projeto Raízes do teatro, iniciado em 1987, a partir da investigação contínua da Tribo de atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (também conhecida como a Terreira da Tribo) e da pesquisa sobre o teatro ritualístico com base nos estudos do teórico, dramaturgo, ator e diretor, referência para as artes no século XX, Antonin Artaud, e no desenvolvimento de uma metodologia que busca estabelecer caminhos em diferentes linguagens, da concepção cênica, a atuação, a pesquisa histórica, a dramaturgia, a música, a plasticidade, a visualidade, a cenografia, a performance contemporânea até o trabalho autoral dos atores – atuadores.
Medeia Vozes foi precedida por outras três produções nessa linha: Antígona, ritos de paixão e morte (1990), Missa para atores e público sobre a paixão e o nascimento do Dr. Fausto de acordo com o espírito de nosso tempo (1994), Aos que virão depois de nós – Kassandra in process (2002), esse último igualmente baseado em uma novela de Christa Wolf. As montagens do teatro de vivência proposto pelo coletivo buscam a reelaboração do mito desde uma perspectiva contemporânea, também no sentido de teatro político e pós- dramático empregado por Hans-Thies Lehmann, e agregam a atitude e a ideia da celebração – o teatro de comunhão – em que o rito é partilhado e vivenciado por todos os seus integrantes: atuadores e público, que dividem (acrescem) o mesmo espaço (abolindo a suposta separação entre palco e plateia, a já rompida quarta parede de Bertolt Brecht), interagindo, comungando da cena e fazendo uso pleno de todos os seus sentidos. Em 2014, o coletivo completou 35 anos de formação e atividade.
Conforme o teórico alemão Hans-Thies Lehmann (2007), o teatro pós-dramático se configura como tal a partir da ruptura da ilusão de realidade e a ausência do drama (entendido, aqui, no sentido das três regras de unidade dramática, a partir da Poética de Aristóteles e reincorporadas ao centro das discussões e práticas teatrais com o Renascimento e outorgadas pelo Romantismo: unidades de ação, tempo e espaço), estabelecendo, com isso, uma divisão entre o teatro considerado dramático e o teatro pós-dramático. Para o teórico alemão, os meios e os signos teatrais da encenação, do espetáculo, quando estão postos no mesmo plano de signos do texto, ou, ainda, podem ser arranjados sem o nível textual, é que se entende essa separação e, então, começa o pós-dramático. Nesse modelo novo de teatro, os signos e seus significantes se transformam e adquirem outras caraterísticas: não há mais representação, mas presença e apresentação, o acontecimento; a experiência deve ser compartilhada e não mais transmitida ao espectador; há uma maior exigência no processo do que nos resultados em si; um maior nível de manifestação do que significação; assim como uma necessidade de que o impulso de energia se sobreponha à informação contida na e em cena.

Foi determinante para a estética teatral o deslocamento da obra para o acontecimento. É certo que o ato da observação, as reações e as “respostas” latentes, ou mais incisivas dos espectadores desde sempre haviam constituído um fator essencial da realidade teatral, mas nesse momento se tornam um componente ativo do acontecimento, de modo que a ideia de uma construção coerente de uma obra
teatral acaba por se tornar obsoleta: um teatro que inclui as ações e expressões dos espectadores como um elemento de sua própria constituição não pode se fechar em um todo nem do ponto de vista prático nem teórico. Assim, o acontecimento teatral torna explícitas tanto a processualidade que lhe é própria quanto à imprevisibilidade nela implícita (LEHMANN, 2007, p. 100).

Fotos: Pedro Isaias Lucas
No programa da peça, distribuído ao final do espetáculo, constam: as motivações e as escolhas que justificaram essa montagem pelo grupo (a ideia de Medéia como infanticida e mulher vingativa da tragédia grega clássica para uma reatualização do mito e uma discussão das verdadeiras causas da perseguição à estrangeira – a mulher que pode acabar com o segredo escondido em Corinto – a batalha pelo poder econômico, político e social); a apresentação da autora do romance em que a peça foi inspirada, a alemã Christa Wolf; uma explicitação do mito de Medéia e como este foi reelaborado durante os séculos; um texto apontando as características e a metodologia do projeto Raízes do Teatro; o registro das vozes das Medéias contemporâneas: a indiana Phoolan Devi, as alemãs Rosa Luxemburgo e Ulrike Meinholf, a somali Waris Dirie e a boliviana Domitila Chungara; a ficha técnica; e o Roteiro de Cenas. São 42 cenas divididas por vozes (o ponto de vista – a voz da personagem - narradora –, naquele momento, num primeiro plano, ao formar um mosaico de monólogos interligados): Primeira voz – Medeia1 , Segunda voz – Jasão, Terceira voz – Medeia; Quarta voz – Acamante; Quinta voz – Glauce; Sexta voz – Leucon; Sétima voz – Medeia; Oitava voz
– Jasão; Nona voz – Leucon; Décima voz – Medeia.
[Sic] São as autoras de cunho feminista dos anos 70 e 80 que resignificam a imagem
de Medeia, lhe reabilitando e absolvendo do infanticídio. (...) Através das diferentes
vozes, os principais personagens examinam seus motivos e suas opções no
desenvolvimento do jogo de poder entre Creonte e Medeia. (...) As personagens
narradoras que aparecem, não contam apenas a ação, da difamação de Medeia até a
sua expulsão. Seus monólogos também incluem lembranças e reflexões. (...) Das
“vozes”, apenas Medeia, Jasão e Glauce são originais do mito, as outras foram
criadas pela autora. Manutenção do poder ou tentativa de alcançá-lo é o princípio
básico de ação da maioria das personagens; a manipulação e funcionalização dos
outros é o meio. (...) No romance [de Christa Wolf], a conexão do mito com os
acontecimentos da atualidade é percebida através do questionamento crítico dos
fundamentos da cultura ocidental; da revelação de semelhanças dos sistemas
políticos das Alemanhas Ocidental e Oriental; e da confrontação de atitudes e
valores “masculinos” e “femininos”. (...) Com isso o Ói Nóis Aqui Traveiz
experimenta a identificação com vários grupos étnicos. O grupo de colcos que deixa
a Cólquida com Medeia surge na obra como os expatriados, refugiados. Eles são
identificados como grupos e minorias da história contemporânea que foram
obrigados a deixar sua terra / pátria como única forma de sobrevivência, dando ao
espetáculo uma característica polifônica e multicultural. Isso mantém o choque
cultura sempre presente em toda a obra, reforçando o discurso da alteridade e
mostrando a intolerância a ele nas culturas ditas civilizadas e hegemônicas
(MEDEIA VOZES, Programa da peça, Impresso, s/d).


Na próxima semana compartilharemos a continuação deste artigo
"De feiticeira grega às estrangeiras contemporâneas: Medeia vozes e a discussão de gênero e memória"