"O teatro é importante para a mudança da sociedade"

Foto André Ávila / Agencia RBS
Fundador do Ói Nóis
Aqui Traveiz fala sobre os 40 anos do grupo, o papel do teatro e a
situação política do Brasil hoje - Fábio Prikladnicki
Em meio às dificuldades de todo tipo que afetam a criação artística no Brasil, o grupo teatral gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz
segue em atividade, ininterruptamente, há 40 anos. Nesse percurso,
tornou-se um dos mais respeitados do país com seus espetáculos de
inegável capricho estético e contundente crítica social. Seja com
releituras de Shakespeare ou dos mitos gregos, as produções falam de
temas do presente: justiça social, igualdade de oportunidades e respeito
às diferenças. Um dos fundadores do Ói Nóis, Paulo Flores é considerado
um mestre do teatro. Será o protagonista do próximo espetáculo do grupo, Meierhold,
baseado na vida do teórico russo que viveu entre 1874 e 1941 e que foi
perseguido pelo stalinismo. Nesta entrevista, ele lamenta que os 40 anos
do Ói Nóis sejam celebrados em um momento de crise, mas reafirma o
poder do teatro como laboratório para imaginar um futuro melhor – e
resistir.
:::: Quando o Ói Nóis Aqui Traveiz foi criado, em 1978, tinha uma
atuação contundente, às vezes colocando o público em situação de
desconforto. Hoje, sem deixar de lado a crítica, costuma conduzir os
espectadores pela mão. Essa questão do afeto é uma necessidade em tempos
de intolerância?
São momentos bem diferentes, mas não acredito que seja preciso
ter todo esse cuidado com o público. O teatro que o Ói Nóis faz e com o
qual se identifica propõe ao público exercitar a imaginação. Esse é o
elemento mais político do teatro. Às vezes, pensamos que é o conteúdo,
mas não. Heiner Müller (dramaturgo e diretor alemão, 1929-1995)
falava que a importância do teatro contemporâneo é criar essa atmosfera
entre ator e espectador, a atmosfera de laboratório para a imaginação
social. Esse tem sido um dos motes para o desenvolvimento de nossa
pesquisa enquanto criadores. O público tem papel fundamental em uma
encenação. Essa ideia já estava no Meyerhold, personagem em que estamos
trabalhando para a próxima encenação. Para ele, o público tem de
participar da encenação, e esta não pode ser uma ideia fechada, pois é o
espectador quem vai dar seu fechamento. É a ideia de obra aberta, que
se desenvolve desde o século 20.
:::: Essas considerações são importantes para entender o teatro como arte, e não apenas entretenimento.
Nesse sentido, o Ói Nóis provoca o público. Provoca-o a entrar
em outra dimensão, diferenciada do nosso mundo contemporâneo, de
relações líquidas, em que tudo é muito rápido. Um espetáculo do Ói Nóis é
o momento de uma experiência em que o sentido mais intelectual só vai
se dar posteriormente. Antes, o espectador tem de se abrir para esse
momento dos sentidos. A nossa cenografia é um elemento de diálogo com o
espectador. Essa é a ideia do teatro ritual. Vivemos um momento de
distanciamento cada vez maior da comunicação direta. No mundo atual, de
formas eletrônicas de vivência e comunicação, o teatro é o território no
qual existe o encontro do ser humano com o ser humano, olho no olho,
carne a carne. O teatro tem um espaço importante no futuro. É a única
forma de comunicação que mantém isso vivo.
:::: Estamos em um momento de louvação do individualismo. O Ói Nóis,
pelo contrário, tem o princípio da criação coletiva, em que todos
participam do processo. Em que medida essa ideia pode ser útil para se
repensar a sociedade como um todo?
Entre as ideias que nortearam o início do Ói Nóis, primeiro
esteve o pensamento anarquista, com as noções de autonomia, autogestão e
criação coletiva. Acho isso fundamental para organizar um novo tipo de
sociedade. Somos um grupo teatral que se pretende uma tribo, com
relações mais diretas de camaradagem, onde possa haver esse encontro do
humano. Quando pensamos em uma tribo como alternativa, é para estreitar
essas relações, homenageando essa forma de organização (
a tribo indígena).
Considero importante que a gente consiga manter esse pensamento, que
está na raiz do grupo. É um teatro que tem compromisso com questões
sociais, de cidadania, de como o ser humano vive. Isso é o que fez o Ói
Nóis trilhar esse caminho, que é um caminho muito difícil dentro dos
parâmetros de mercado.
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O Amargo Santo da Purificação - Foto Claudio Etges |
:::: Em 1978, no início do grupo, o Brasil ainda vivia sob ditadura
militar – que deixou como legado uma crise econômica. Hoje o Brasil está
novamente tentando sair de uma crise. Como se comparam essas
realidades?
Quando o Ói Nóis surgiu, existia uma vitalidade grande daqueles
jovens que formaram o grupo em combate contra a ditadura. Havia toda
uma perspectiva de transformação social. O Ói Nóis acompanhou e fez
parte das lutas que redemocratizaram o país, que trouxeram novos
elementos para a discussão, como a preservação da natureza e a luta das
minorias. Sempre pensamos que o país continuaria se democratizando com o
passar dos anos. Agora, quando vemos o retrocesso atual, começamos uma
luta para conter a onda conservadora e as ideias fascistas, em defesa da
democracia. Nossa vivência, neste momento, é essa. Estamos vendo de
novo coisas daquele momento sombrio, que são a censura, a perseguição e a
prisão de artistas. Isso é assustador. O Meyerhold, que estou
estudando, foi um genial ator e encenador processado, preso e fuzilado
pelo sistema stalinista. Vivemos algo próximo a isso no Brasil atual.
:::: Como assim?
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Foto Lucas Gheller |
Estudo o processo de Meyerhold e penso no processo do Lula. De
que maneira se consegue legalmente criar uma acusação a uma pessoa para
que ela possa ser eliminada da vida pública? Isso tem sido algo triste
para mim, mas também revelador de como o sistema dominante consegue ter
nas mãos todas as instâncias possíveis, todas as instituições a seu
serviço. Sabemos que, historicamente, o sistema jurídico está a favor de
uma elite financeira. Chega a ser ridículo que 1% da população detenha
as riquezas do Brasil. Um país de milhões de pobres que vivem apenas
para o trabalho, que não conseguem imaginar outra possibilidade de vida.
Isso é quase escravidão, porque não há perspectiva. E aí tem a classe
média, que é a tropa de choque, apoiando a elite.
:::: Se em 1978 havia intensa movimentação social, hoje parece haver certo desânimo. A sociedade está menos mobilizada?
Acredito que ainda possa haver uma reversão. Nesse sentido,
existe um otimismo da minha parte sobre este ano, que vai ser decisivo.
Mas nem sabemos se vai haver eleição ou não. Se o candidato do sistema
não estiver pronto para ganhar, talvez inventem uma forma de adiar a
eleição. Espero que os defensores da democracia vão para a rua. É a
única maneira de conter a onda desse pensamento fascista que está
tomando conta do país. Quando vemos que Bolsonaro tem 15% nas pesquisas (19% sem Lula, segundo Datafolha), com ideias tiradas da matriz fascista de Mussolini (ditador da Itália entre 1922 e 1943),
fica claro que se está num momento em que os trabalhadores têm de se
mobilizar para ir às ruas. A atual onda conservadora não é só
conservadora – é fascista. É apavorante que o fascismo está começando a
tomar conta de diversas camadas da sociedade, inclusive algumas fatias
das camadas populares.
:::: Em
meio à crise, o financiamento à cultura está secando, tanto das fontes
privadas quanto das públicas. O que os artistas podem fazer?
Acredito que a cultura, pelo menos no Brasil, sempre viveu essa
crise. A arte independente e autônoma sempre encontrou essas
dificuldades. Durante os anos 2000, houve uma sensibilidade maior nas
políticas do Ministério da Cultura. Projetos como os Pontos de Cultura
avançaram um pouco na ideia de uma cultura mais participativa, que
pudesse democratizar o acesso, descentralizar. Hoje, com o Ministério da
Cultura desmantelado, tudo fica mais difícil. Todas as formas de
inovação artística estão à deriva no país. No caso gaúcho, é triste
porque não existe nada no Estado e no município. Não há uma política de
fomento à cultura, de incentivo aos novos artistas, de formação de
plateia, de circulação dos artistas. Espero que artistas continuem,
porque esse é o momento de não desistir.
:::: O que vai acontecer, no seu ponto de vista?
Tudo vai ser feito com orçamento menor. É do interesse desse
sistema dominante que o teatro e as artes em geral percam força. Assim,
vão ficando por aqui só os artistas inseridos na ótica do mercado. Quem
está na contramão do sistema de produção capitalista vai desaparecendo.
Certamente vão desaparecer muitos grupos de teatro nesse processo. Não
há nenhum tipo de verba. E a atuação em conjunto é muito difícil, porque
vivemos em um país de dimensão continental. Quanto sai uma passagem
daqui ao Mato Grosso? Mesmo a comunicação virtual é difícil, porque,
para se organizar, é preciso passar por ações físicas, presentes. Quando
criamos o Movimento de Teatro de Grupo (Redemoinho – Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo),
nos anos 1990, os grupos se encontravam com todos os seus integrantes,
apresentavam espetáculos, faziam-se debates, pensava-se o que a gente
queria para o país. Foi uma época rica. Hoje, tanto em âmbito federal
quanto estadual e municipal há a dissolução do pensamento crítico da
arte, o que passa pelo extermínio dos grupos de teatro, porque eles têm
uma força grande de reunir pessoas, se movimentar, fazer pensar e pulsar
vários questionamentos sobre a sociedade. Mas alguns resistirão. Tomara
que o Ói Nóis seja um deles.
:::: Seria a hora de buscar alternativas?
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Foto Pedro Isaías Lucas |
Eu acredito. Em uma das piores crises do Ói Nóis, fizemos o (
espetáculo de teatro de rua)
Caliban – A Tempestade de Augusto Boal (
2017)
porque achamos importante ir para a rua falar da resistência. Caliban é
um personagem escravizado, colonizado, mas que resiste. É isso: mesmo
escravizados, precisamos resistir. O chamamento do Ói Nóis é esse. Temos
de ir para as ruas, estar junto das ideias progressistas, com todas as
pessoas que lutaram até hoje pela democracia. A juventude trouxe um
exemplo forte de mobilização ao ocupar as escolas (
em 2016). Existe uma possibilidade de resistência ainda, e o teatro deve estar presente.
:::: Entre as causas abraçadas pelo
Ói Nóis, está o feminismo. O aspecto feminino está até no nome da sede
do grupo, a Terreira da Tribo. Hoje, o feminismo está ainda mais
difundido do que estava no início do grupo. Qual a sua visão sobre esse
crescimento?
O Ói Nóis levantou a questão ambiental, a defesa das minorias,
lutamos sempre em prol do feminismo, contra o racismo. Todas as
bandeiras das chamadas minorias sempre estiveram nas nossas intervenções
cênicas, o que foi fundamental para a fortificação do grupo. Mas nunca
perdemos de vista que essas questões fazem parte da luta de classes, que
é o que tem mantido coerência no grupo.
:::: Nestes 40 anos, você percebe o reconhecimento ao grupo e ao seu trabalho como um mestre do teatro?
Para mim, é importante que o Ói Nóis deixe um legado, porque
incentivamos várias formas de criação artística. Consideramos que o
teatro tem que estar comprometido com a mudança social, então sempre
fizemos um teatro associado a movimentos populares. Isso se refletiu em
encenações, em nosso movimento artístico-pedagógico e mesmo em
participações em momentos de atuação política direta. Levamos o teatro
para a rua como forma de contestação ou reflexão sobre questões que
estavam acontecendo na cidade e no país. Esse legado é importante e vai
continuar. Se vamos ter uma recepção maior ou não, vai depender muito de
quem tem o poder, de quem gere essas instituições de recepção. Por
exemplo, o Departamento de Arte Dramática da UFRGS vai assumir isso ou
não (o estudo sobre o trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz)? Vai
depender dos professores que estão ali. Todo o país está estudando o Ói
Nóis. Como Porto Alegre não estuda? Esse teatro de contestação, que se
coloca sobre as questões nacionais, terá apoio em algum lugar do mundo?
Sabemos que em países que alcançaram uma democracia mais evoluída há
grupos com uma visão crítica da sociedade que têm respaldo porque é de
direito. Nosso teatro é de direito. Fazemos um teatro público e temos
direito a verbas públicas porque chegamos à maior parte da população
através do nosso ensino, da nossa ação artístico-pedagógica, das
diversas oficinas feitas na Terreira e nos bairros populares, como o
teatro de rua, que chega às praças e parques de Porto Alegre e do país,
inclusive na zona rural. O Ói Nóis é um dos poucos grupos que se
apresentam em assentamentos rurais.
:::: Sabendo dessa proximidade do
grupo com as camadas populares, como esse segmento da população
brasileira está percebendo a realidade do país?
Tudo é muito difícil de falar nesse momento em que houve uma
ruptura democrática no país. Observamos que, contrapondo-se ao extremo
individualismo das classes médias, superiores e da elite, existe um
espírito de solidariedade (nas comunidades pobres). Não é
aquela ilusão do morro nos anos 1960. Existe realmente. O que vemos nas
comunidades mais pobres? Estão dominadas por um tipo de estética que não
foram elas que escolheram, mas que foi imposta pela mídia dominante.
Por que tu gostas de determinada música e não de outra? Porque tu és
bombardeado o dia inteiro com aquela música. Se nunca viste nada
diferente, como vais gostar de outra coisa? O teatro sempre entra na
contramão. Como o teatro é algo bem à parte, tem um caminho um pouco
mais livre, porque traz outra forma de se expressar que é diferenciada
daquela música que bate no ouvido todos os dias. É nesse sentido que o
teatro é importante para a mudança da sociedade. Espero que a gente
chegue em algum momento do país em que o governo pense que o teatro é
fundamental para essa transformação de mentalidade, que a gente possa
ver a outra pessoa como um igual. O teatro humaniza. Estamos vivendo um
momento em que é cada um por si, salve-se quem puder. E, o que é pior,
estamos vivendo um momento em que a classe média está forjando um ódio
cada vez maior contra os pobres, que são a maior parte da população.
:::: Você não tem celular, nem está nas redes sociais. esse estilo de vida é uma declaração de um outsider?
Claro que é uma declaração. Hoje, as pessoas aparentemente se
comunicam muito e, ao mesmo tempo, não se comunicam nada. É um novo
aspecto da nossa solidão individual. Essa coisa de as pessoas irem à
rede social denunciar tal coisa... É claro que a denúncia é importante,
mas às vezes, nas redes, dizem barbaridades. Umberto Eco falou sobre
isso (
o pensador italiano morto em 2016 declarou: "As mídias sociais
deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam
só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade").
Falo do teatro como uma força que se contrapõe a isso. Quando me
perguntam se o teatro vai acabar, respondo que não. Vai ser o reduto do
encontro do ser humano com o ser humano.
:::: Você também é vegetariano, embora não faça ativismo sobre isso. Como essa ideia começou?
Viemos de uma cultura que determina todas as coisas que vamos
ser até o fim da nossa vida. É uma luta grande romper com isso, romper
com todos os parâmetros que aprendemos na família e na escola. Comecei a
pensar nessa questão na minha adolescência. Chegou um momento em que
concluí: “Tenho que parar de comer carne”. Se tu almejas uma sociedade
melhor, nenhuma espécie pode se sobrepor a outra. Se queres uma
sociedade mais igualitária, não podes te manter exercendo esse poder de
te alimentares de outro ser vivo que é tão próximo de ti. Alguém pode
rebater: “E a alface? E a beterraba?” (risos). São completamente
diferentes, têm outro processo de evolução. Isso me levou a me tornar
vegetariano (
quem não come carne) e, depois, vegano (
quem não consome nenhum produto de origem animal).
É mais difícil ainda. Sou vegano há mais de 10 anos e vegetariano há
quase 40. O Ói Nóis me levou a repensar todas as coisas da minha vida.
Quando o grupo surgiu, queríamos que transformasse os outros e nos
transformasse primeiro. Então, essa questão ética é importante para o Ói
Nóis. Muitos atores entram no grupo e se transformam. Mas sem a
obrigação. O Ói Nóis nunca pediu atestado ideológico para ninguém. Fomos
um dos primeiros grupos que lançaram a campanha do lixo seco em Porto
Alegre, no início dos anos 1990. Havia uma espécie de contêiner na
frente da Terreira para o pessoal colocar o lixo seco. Fizemos
encenações na frente dos supermercados para ensinar a separar o lixo. Os
primeiros postos de lixo seco em Porto Alegre foram a Agapan (
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) e a Terreira da Tribo. Mas, em meio a todas essas questões, o Ói Nóis nunca esqueceu a luta de classes.
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