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De volta ao FIT Rio Preto após um hiato de 10 anos, Tribo dos Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz recorre a Augusto Boal para refletir sobre a onda conservadora que assola a América Latina na atualidade
Veja a matéria no Diário da Região
Foto: Nathalie Assis |
Um dos grandes destaques da
programação da 18ª edição do Festival Internacional de Rio Preto, a
Tribo dos Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre (RS), volta à
cidade no ano em que completa quatro décadas de história. Uma história
que teve início quatro anos depois que o dramaturgo Augusto Boal
(1931-2009) escreveu a peça A Tempestade (1974), que, agora, se tornou
um grande espetáculo de rua nas mãos dos atuadores gaúchos.
Intitulado Caliban - A Tempestade de
Augusto Boal, o espetáculo que chega ao FIT 2018 para duas apresentações
revela a grandiosidade de um grupo que tem a coletividade, a pesquisa e
a resistência política como marcas registradas.
Uma resposta ao clássico de Willian
Shakespeare, a história escrita por Boal é vista pela perspectiva de
Caliban, metáfora dos seres humanos originários da América que foram
dizimados e escravizados pelos invasores colonizadores, representados
pelo personagem Próspero. Na versão de Boal, Próspero é tão perverso
quanto os nobres europeus que usurparam o seu poder.
Desta forma, a peça de Boal é usada pela
turma do Ói Nóis para analisar criticamente a “tempestade” conservadora
que sofre a América Latina hoje, e, especialmente, o grande retrocesso
nos direitos sociais e na luta pela autonomia econômica, política e
cultural do Brasil.
Em entrevista ao Diário,
a atriz Tânia Farias destaca que o momento é de reflexão para o grupo,
pois há muitas semelhanças na realidade do Brasil de hoje com o período
da ditadura militar, em que se deu o nascimento do coletivo gaúcho.
"O teatro segue sendo um instrumento
muito potente, é um lugar de encontro e, cada vez mais, a gente precisa
desse lugar de encontro. A gente está vivendo uma virtualização de tudo o
que é fundamental e essencial, de tudo o que é humano", comenta a
atriz.
A volta do Ói Nóis a Rio Preto também é a
oportunidade para o público conhecer uma outra faceta do trabalho do
coletivo gaúcho. A primeira participação no FIT, há 10 anos, deu-se com
Aos que Virão Depois de Nós - Kassandra in Process, montagem que explora
os conceitos do teatro de vivência. "O teatro de rua do Ói Nóis não
poupa nada", destaca Tânia, referindo-se a grandiosidade das alegorias e
a infinidade de recursos cênicos marcam seus trabalhos. "O cara que
passa pode parar e não ver a peça toda, mas ele vai levar uma imagem
consigo porque são imagens grandes, os atores são quase instalações",
conclui.
O Ói Nóis volta a Rio Preto
justamente no ano em que celebra quatro décadas de história. O que
considera mais desafiador nessa trajetória tão longeva?
O Ói Nóis surge num momento em que a
gente estava com as liberdades cerceadas - a gente ainda estava sob o
regime da ditadura. Por outro lado, é um momento de rearticulação dos
trabalhadores, quando voltam a acontecer grandes manifestações de rua.
Eu acho que esse cenário em que o Ói Nóis surgiu marcou definitivamente o
que o grupo é até os dias de hoje, o seu compromisso em fazer um teatro
que esteja conectado com o seu tempo.
Talvez isso seja o grande desafio do Ói
Nóis, manter há 40 anos - não sem mudar, não sem se reinventar - o
compromisso de fazer um teatro comprometido com o hoje, com as mulheres e
homens de hoje, com as lutas sociais de hoje. Na verdade, o Ói Nóis é
um grupo que teve claro desde o princípio que queria dizer muitas
coisas. O grupo surge na época da ditadura, muita censura, muito
cerceamento de liberdades. Ele vai buscar colocar na cena aquilo que não
se estava falando porque não se podia falar. Na verdade, o País estava
amordaçado, e esse nosso desejo estava lá desde o início, desejo de
falar aquilo que é pertinente, aquilo que é preciso dizer no momento.
Foto: Nathalie Assis |
Por outro lado, o Ói Nóis nunca se
descuidou da pesquisa estética; sempre houve um entendimento muito
grande de que é preciso que a pesquisa de linguagem seja levada às
últimas consequências, de que ela seja séria e aprofundada, para que
possa vir, com a força necessária, tudo isso que o Ói Nóis tem desejo de
viver, tudo isso que o Ói Nóis tem desejo de construir coletivamente -
esse outro modo de existir e de viver, essa outra sociedade que a gente
quer ajudar a construir. O grande desafio do Ói Nóis foi sempre esse,
foi se manter criadores sérios, pesquisadores que vão às últimas
consequências, um aprofundamento no trabalho do ator... o Ói Nóis é um
dos grupos que têm uma grande preocupação com o formar. Muitos grupos
gaúchos foram formados a partir do Ói Nóis, assim como muitos atores e
diretores saíram do grupo. O Ói Nóis é um grupo-escola, e eu penso que
esse compromisso que une estética e política, mantê-lo até hoje é um
grande desafio. O Ói Nóis é um grupo que existe há 40 anos, o que, para o
teatro, já é um velhinho. Quarenta anos para um coletivo de teatro é
bastante tempo. Mas seguimos dispostos a correr risco, a pesquisar, a
arriscar fazer o que nunca fez, enfim, a estar vivo.
Curiosamente, o momento político
e social em que o Ói Nóis completa 40 anos também é delicado. Tem até
gente pedindo a volta da ditadura militar.
É isso. Esse momento também está sendo
de muita reflexão para o grupo justamente por isso. O Ói Nóis surge
nesse lugar tão duro, tão árido, tão difícil, tão amordaçado. É claro
que há muitas diferenças entre o que está acontecendo hoje e o que
aconteceu a partir do Golpe de 64, mas há muitas similaridades. E, de
verdade, acho que poucos de nós acreditávamos que estaríamos onde
estamos hoje. Depois de tudo, a gente está exatamente nesse lugar onde
nós estamos, uma espécie de terra arrasada que a gente tem que aprender a
semear de novo. Eu acho que, por outro lado, é significativo, é
terrível.
Esse momento coloca o Ói Nóis a pensar e
a afirmar mais uma vez a sua necessidade de existência. O teatro segue
sendo um instrumento muito potente, é um lugar de encontro e, cada vez
mais, a gente precisa desse lugar de encontro. A gente está vivendo uma
virtualização de tudo o que é fundamental e essencial, de tudo o que é
humano. O teatro acaba cumprindo uma função muito importante - ele é o
lugar de encontro, ele é o lugar de construção de pensamento, de
caminhos, de olhar e ver. É o lugar que, talvez, nos reensine a ver; a
ver o outro, a enxergá-lo de verdade. A gente precisa se enxergar, e a
gente só vai conseguir fazer isso se enxergar o outro, e, a partir daí,
provavelmente, a gente vai construir uma alternativa juntos. Eu acho que
tem muitas questões neste momento para o Ói Nóis. É a grande crise do
grupo completar 40 anos (risos).
É literalmente a crise dos 40 (risos).
É. E veja você que não é a toa. Trata-se de um momento bem complexo da nossa história como povo brasileiro mesmo. Chegamos aqui.
O espetáculo que vocês trazem ao
FIT 2018 é emblemático nesse sentido, pois Augusto Boal foi um artista
que também enfrentou a repressão da ditadura militar. Trazê-lo de volta à
cena é necessário neste momento?
Sim. O Boal escreveu em um momento de
derrota. E agora, talvez a gente esteja vivendo de novo um momento de
derrota. A gente precisa nascer de novo agora, e acho que o Caliban é
muito interessante neste aspecto. E a gente está vendo a força do
trabalho ao levá-lo para a rua. A gente precisa reconhecer o momento
para dar um passo à frente. A gente precisa muito dar esse passo. E eu
acho que o Caliban nos situa neste sentido: nós chegamos aqui, a gente
não pode se deixar colonizar de novo - é isso que querem fazer com a
gente. Não se pode botar a gente de novo debaixo da bota. A gente já
tinha se olhado, se achado bonito, entendido que a gente tem um valor
inestimável e que esse valor não é do nosso "senhor", é nosso, é do que
nós somos. O Caliban tem muito a ver com o momento porque é, de novo, um
momento de derrota.
O trabalho coletivo é outra
marca forte do grupo, que reúne muitos artistas em seus espetáculos,
além de uma série de outros recursos. Como é pensar esse teatro
coletivo?
O Ói Nóis é um grupo que sempre trabalha
com bastante gente. Tem muito atuadores em cena, e acho que isso é
também uma característica do grupo. A presença dos coros sempre envolve
muita gente. Por outro lado, o Ói Nóis desenvolve há muitos anos uma
pesquisa para o teatro de rua, e eu acho que o grupo vem experimentando
cada vez mais os recursos plásticos, musicais e cênicos de abordagem da
rua como espaço cênico. E cada vez mais o grupo tem descoberto como
dialogar com esse lugar que não está preparado para receber o teatro,
mas, no entanto, é o lugar do teatro. O Caliban faz parte desse projeto
de pesquisa, de como ir para a rua, as grandes alegorias que a gente já
vem trabalhando. Ele faz parte dessa trajetória de presença
significativa na rua. Quando se instaura, o cara que passa pode parar e
não ver a peça toda, mas ele vai levar uma imagem consigo porque são
imagens grandes, os atores são quase instalações. O teatro de rua do Ói
Nóis não poupa nada. E a gente sempre teve essa pesquisa
multidisciplinar na cena - tem cinema, tem dança, artes visuais, teatro,
música, tem tudo ali.
Foto: Nathalie Assis |
O Ói Nóis volta a Rio Preto após
um hiato de dez anos. E muita gente está na expectativa de reencontrar o
grupo que apresentou Kassandra in Process. Como é voltar ao FIT para
vocês?
O FIT Rio Preto é um dos festivais mais
queridos para nós. Mas essa volta será diferente para quem viveu a
experiência de Kassandra. O teatro de rua e o teatro de vivência
envolvem pesquisas bem diferentes. A gente ainda espera, em algum
momento, tentar fazer uma Medeia Vozes, que é um espetáculo que dialoga
mais com a vertente do teatro de vivência. A gente entende que essa
qualidade de ritual que tem os ambientes cênicos do teatro de vivência
de Ói Nóis também gerou essa "mística" em torno do grupo. Mas o teatro
de rua tem outra pegada, que é essa celebração de multidão.
Então, a gente vai reencontrar o público
rio-pretense com essa outra qualidade de energia, de espetáculo, de
ritual. As pessoas terão a oportunidade de conhecer o teatro de rua Ói
Nóis, uma outra faceta de criação do grupo. Para a gente, é uma alegria
enorme voltar a Rio Preto. A nossa passagem por aí está entre a coisas
mais belas que o grupo viveu. A gente foi muito bem acolhido pela
cidade, foi muito caloroso. A gente pode apresentar a nossa proposta, a
nossa proposta de existência, política, estética. E espero que esse
reencontro seja um aprofundamento dessa relação. E, claro, que a gente
não demore tanto para voltar novamente.
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