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EVOÉ! JÚLIO SARAIVA


Júlio Saraiva, falecido recentemente, era um artista completo: ator e diretor teatral, bonequeiro, cenógrafo, iluminador, artista plástico e músico. Porto-alegrense, nos anos setenta, ainda um jovem arquiteto, engajou-se na aventura de fazer teatro nesse país. A primeira vez que eu assisti o Júlio em cena foi em “Hoje é Dia de Rock” em 1976, peça do mineiro Zé Vicente, com direção de Dilmar Messias, no Teatro-Circo Catavento, montado na beira do Guaíba. Júlio contracenava com outros grandes artistas gaúchos, entre eles, Catulo Parra, Lurdes Eloy e Sonia Pellegrino. A sua atuação me deixou uma forte impressão. Logo depois nos conhecemos nas salas de aula do DAD (Departamento de Arte Dramática) - UFRGS. Das primeiras conversas nasceu uma amizade que durou essas quatro décadas. Desde então acompanhei o seu trabalho, primeiro como ator e logo a seguir também como encenador. Para mim, ali começava a trajetória de um dos melhores atores do teatro gaúcho. 

Em 1977 participou do elenco de “O Homem que não quis morrer”, também com o Dilmar Messias, para a seguir atuar em “A Morta”, do revolucionário Oswald de Andrade, na direção da iconoclasta Ana Maria Taborda, com o grupo Alternativa. A montagem teve uma grande repercussão na cidade e levou o Alternativa a apresentar o espetáculo no Rio de Janeiro. Em 1979, junto com Ana Maria Taborda, criam o tropicalista e carnavalesco “Retomando Tudo”, uma criação coletiva do Alternativa, com textos de Gregório de Matos e Torquato Neto. Também é o ano do seu encontro com o diretor argentino Hector Grillo na montagem “Vamos... Força.... UUUUUPA”. Influenciado pelo argentino, que tinha um notável trabalho com bonecos em Santa Catarina, Júlio entra no mundo dos bonecos. Monta com Fernando Zimpeck “Cadê o Osso da Minha Sopa”, premiado com o Tibicuera como o Melhor Espetáculo de Teatro Infantil de 1979. Realiza a seguir “M’Boiguaçu – A Lenda da Cobra Grande” de Carlos Carvalho. Nasce um diretor teatral irreverente, crítico do teatro acomodado e policiado a serviço do bom gosto burguês. 



No início dos anos oitenta realiza duas encenações marcantes: “Rango”, baseado nos quadrinhos de Edgar Vasques, um “Esperando Godot” com crítica social e com um humor fulminante; e “Papel, Papel, Papelada”, para mim a melhor experiência de teatro para crianças. Um trabalho fantástico de invenção, com manipulação de bonecos criados a partir de folhas de papel. “Rango” fez um circuito de apresentações, com grande repercussão, pelo centro do país, através do projeto Mambembão do então Instituto Nacional de Artes Cênicas. Nesse período estivemos mais próximos e trocamos muitas ideias. Visitei muitas vezes o Júlio e Maria Rita Stumpf – cantora e compositora, hoje em São Paulo – que na época compartilhavam a vida em comum e tiveram o filho Mateus, ainda pequeno. Muitas conversas sobre o teatro de Peter Brook e a filosofia de Gurdjieff. Foi o tempo em que criamos a Associação Gaúcha de Artes Cênicas, uma associação que contemplava o trabalho cooperativado. Começamos a ensaiar “As Criadas”, de Jean Genet, montagem que não se concretizou, mas que foi a origem para a criação dois anos depois de “As Domésticas” da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, em 1985. Nesse período Júlio dirigiu o João Carlos Castanha em “A Mãe” e “A Rainha do Rádio”, trabalhos que o tornaram conhecido pelo público gaúcho. Também atuou e criou a cenografia de “Calabar”, de Chico Buarque e Rui Guerra, na montagem de Dilmar Messias. Logo depois o Júlio foi para o Rio de Janeiro e viajou por outros estados. Retornou a Porto Alegre com Hector Grillo na montagem de “Cadê o Ovo de Colombo ou Tchau Minerva” em 1992, com o qual fez circuito por países do cone sul. Criou o grupo Julietas e os Metabonecos, no qual dirigiu “Maria Farrar”, baseada no poema de Bertolt Brecht. O espetáculo atravessou décadas e em 2014 participou do World Puppet Carnival, importante Festival de Bangkok, na Tailândia. 



Meu reencontro com o Júlio foi em 1996, nas reuniões do Orçamento Participativo, quando havia a esperança de que a nossa democracia iria evoluir para a participação direta da população. Foi o período em que ele, com a sua genialidade, participou da criação coletiva do Ói Nóis Aqui Traveiz “A Morte e a Donzela”, um texto de Ariel Dorfman. No espetáculo, encenado em 1997, Júlio interpretava admiravelmente o médico torturador Roberto Miranda, que no filme de Roman Polanski foi vivido por Ben Kingsley. Também criador da iluminação do espetáculo, foi premiado com o Prêmio Açorianos daquele ano. Mesmo ano em que publicou o livro Manual de Cenotecnia” (Editora Movimento), com João Acir e Lidia Richiniti. 

No início dos anos dois mil criou a “A Valsa nº 6”, de Nelson Rodrigues e “Os Vigaristas”, adaptação da comédia francesa do século XV “A Farsa do Advogado Pathelin”. Em parceria com o ator Gutto Basso, criou “Van Gogh” em 2007 e “O Idiota: Capítulo 6” em 2014. A adaptação de Fiódor Dostoievski mostrava um indivíduo puro que, numa sociedade corrompida e desumana, é considerado um inadaptado, um idiota. Sua bondade e sua sinceridade revelam de forma trágica um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas. Nos últimos anos criou “O Último Personagem 1968 – Um Exercício Dramático” com Eduardo Toledo do Grupo Teatro Circo Tabarin e “Hoje Sou Hum; Amanhã Outro”, versão vigorosa da obra de Qorpo-Santo, com o Ubando Grupo. 

Júlio participou de alguns filmes, como os longas “Tolerância” (2000) de Carlos Gerbase e “Concerto Campestre” (2006) de Henrique Freitas, e o curta “Sobre Sonhos e Águas” (2017) de Mirela Kruel. Foi sempre bem humorado, brincalhão e sarcástico, mas também indignado com as injustiças sociais e com o avanço do pensamento neofascista que nos últimos anos tomou conta do país. Mais que um grande artista, Júlio Saraiva foi um ser humano especial, que tocou profundamente todos os artistas que tiveram o privilégio de trocar e aprender com ele. Para rememorar um pouco da sua trajetória, amigos, artistas e o público de teatro irão realizar nesta quinta-feira, dia 19 de setembro, quando ele completaria 71 anos, um tributo à sua memória. Será uma noite com depoimentos, exposição plástica, teatro, cinema e música, na Terreira da Tribo (Rua Santos Dumont, 1186). Por tudo o que ele representou para a história recente do teatro gaúcho, o nosso grande agradecimento é entoado no brado dionisíaco: Evoé! Júlio Saraiva.

Paulo Flores
Atuador da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz