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(Questão
de Crítica - Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais em
22/01/2009 )
A
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, está
completando 30 anos de vida, ao longo dos quais construiu uma
elogiável folha de serviços prestados ao teatro gaúcho e
brasileiro, uma referência histórica e cultural que não pode ser
ignorada. Em função das dificuldades de locomoção e da pouca
projeção propiciada pela mídia sulista em relação ao resto do
país, a Tribo padece de pouca divulgação junto ao grande público
brasileiro.
As
comemorações em torno da data significativa envolvem várias
manifestações. A primeira delas é a volta ao cartaz, para
encerramento de sua temporada, do espetáculo A Missão, baseado em
Heiner Müller, com apresentações no mês de dezembro de 2008. Em
seguida, a estréia de O Amargo Santo da Purificação, criação
coletiva baseada em poemas de Carlos Marighella, espetáculo de rua
destinado às praças e logradouros de intenso afluxo de transeuntes
da capital, além do interior e cidades brasileiras. E, completando o
quadro, apresentações das oficinas de trabalho que a Tribo mantém
nos bairros pobres da cidade, a terceira frente de atuação que a
caracteriza como celeiro de reprodução de suas técnicas e
iniciativas. Ou seja, um investimento nos três braços que saem
desse corpo múltiplo, pensado e agido como um coletivo de trabalho
cênico.
Esse
conjunto de atividades encerra um ciclo. A Tribo foi desalojada de
sua antiga sede e ganhou do poder municipal um terreno para a
construção de um novo território cênico, coisa que, segundo
alguns, tornou-se um "presente de grego", pois implicará
na construção de um novo edifício - o que não será tarefa nada
fácil para um coletivo artístico que vive às duras penas. Mas
coragem não falta aos atuadores e, sem dúvida, eles saberão
contornar criativamente essa nova situação.
Não
tem sido outra, aliás, sua história, iniciada em 1978, tendo à
frente Paulo Flores, o último remanescente do grupo fundador
original, líder que projetou a equipe ao longo desse tempo e
contribuiu em modo decisivo para a arquitetura do projeto
sócio-cultural que a caracteriza: ser um laboratório para a
imaginação social.
Montagens
como As Domésticas (1985), Fim de Partida (1986), Ostal (1987),
Antígona, ritos de paixão e morte (1990), Missa para atores e
público sobre a paixão e o nascimento do dr. Fausto de acordo com o
espírito de nosso tempo (1994) foram espetáculos de sala e vivência
que representam alguns dos trunfos do grupo em sua trajetória; ao
lado de algumas bem sucedidas realizações para a rua, como A Visita
do Presidenciável (1984), A Exceção e a Regra (1987/1998), Dança
da Conquista (1990), Independência ou Morte (1995) e A Saga de
Canudos (1999).
Nos
últimos tempos a Tribo tem se voltado para Heiner Müller, com as
montagens de Hamletmáquina (1999), Kassandra in process (2002),
adaptação do romance de Christa Wolf construída sob o patrocínio
estético do autor alemão e A Missão (2006), culminando um ciclo
que pensa sobre o futuro e avalia os desastres do presente.
Fotos de Cisco Vasquez |
O
Horror, o Caos
"Uma
função do drama é a evocação dos mortos - o diálogo com os
mortos não deve se romper até que eles tornem conhecida a
parcela de futuro que está enterrada com eles" - declarou
Heiner Müller a propósito de seu teatro que, em A Missão, efetua
um longo interdiscurso com várias revoluções: a Francesa de 1789,
sua sequência e consequência no Haiti, aquela russa de 1917, e
aquela alemã de 1953, quando operários insurretos foram duramente
reprimidos pelos tanques soviéticos. Com sua ácida ironia, Müller
não evoca apenas fatos históricos, mas formas dramáticas datadas
para com elas estabelecer um diálogo artístico. Desse modo, são
reconhecíveis em seu texto alguns contrapontos em relação a A
Morte de Danton, de Büchner, O Sol Sobre a Forca, romance de Anna
Seghers, e a peça didática A Medida, de Brecht.
Esse
material dramático multiforme serve ao autor como campo de pesquisa
para a elaboração de seu texto, o que o torna um legítimo espécime
da pós-modernidade, adquirindo os contornos daquela escritura
pós-dramática evocada por Hans-Thies Lehmann como característica
de nosso tempo.
São
vozes múltiplas as ouvidas em cena, sem um eixo norteador ou um viés
cartesiano orientando a apreensão dos sentidos, o que torna o
espetáculo do Ói Nóis uma coleção de fontes discursivas e
personagens em ação, espaços variados e dimensões temporais que,
sobrepostas e nunca amalgamadas, deixam reconhecíveis as camadas que
lhe serviram como arquitetura.
Debuisson,
o médico intelectual incumbido pelo Diretório de seguir para o
Haiti e lá promover a revolta entre os escravos, é apresentando
como um habitante do gulag soviético, confinamento que o stalinismo
forjou para livrar-se de dissidentes incômodos. Mas que servem,
nesse momento, para os fins pretendidos e por isso são resgatados
das masmorras. Ao lado do camponês Galloudec e do negro Sasportas,
os três cruzam o Atlântico com a missão de globalizarem a nova
ordem criada naquele final de século XVIII. Há, no princípio, um
confronto visceral entre civilizações: uma branca e regida pelos
princípios da racionalidade e outra negra, obediente às diretrizes
cósmicas míticas, o que torna a aproximação entre as facções um
agudo campo de desentendimentos e um diálogo de surdos. Mas fatores
subjetivos igualmente turvam a convivência, uma vez que cada um, a
seu modo e segundo as conveniências, se posiciona diante do caos
aberto com a suspensão de todas as ordens então conhecidas. A
Revolução, afinal, é total ou não é nada...
Espetáculo
de vivência, a criação do Ói Nóis investe fundo nas experiências
a que o público é convidado a partilhar. Cada cena ocorre num
espaço diferente, dentro do grande labirinto em que o galpão de
trabalho foi transformado. O público se espreme em corredores ou se
espalha em grandes nichos, se toca, sente no ar aromas diversos,
degusta frutas, sons e movimentos incomuns a uma realização cênica,
tornando sua presença muito mais que aquela vislumbrada com uma mera
ida ao teatro. Ali se partilha – atuadores e público – uma
experiência social única, propiciada pelos eflúvios da ficção
teatral. Tudo é ou parece ser mais do que é, ao mesmo tempo em que
são visíveis os recursos miméticos e de dissimulação, tornando o
jogo da teatralidade muito mais intenso e dinâmico.
Laboratório
da imaginação social, tal é o desígnio pretendido por Müller
com suas criações; coisa que, como noutra metáfora deslindada por
Deleuze/Guattari, explicitada como máquina de guerra - espaço liso,
encontra nesse espetáculo uma exemplar concretização. Explicando
melhor: para os autores franceses, uma das formas conseqüentes de
agenciamento social dá-se através do nomadismo, uma linha de fuga
que aponta novos percursos, uma desterritorialização que pode
propiciar efetivamente a experiência do novo. Onde o liso opõe-se
às veredas e alamedas que o antigo relevo não deixava perceber.
Se
aquelas distintas facetas das revoluções são multiplicadas como
num caleidoscópio que as ajunta sem propiciar ligaduras, também
imagens dispersas de outras montagens anteriores do grupo são
devidamente glosadas nessa encenação, aumentando o plano do
interdiscurso. É nesse sentido que o Ói Nóis cumpre sua missão,
fazendo da História não uma sucessão de datas, eventos e
biografias, mas uma experiência radicada no cotidiano, no íntimo de
cada espectador, que sente a duração entrar e sair pelos poros.
Efeitos
de Dioniso, certamente, esse deus nômade que patrocina trânsitos e
deslocamentos.
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