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A Visita do Presidenciável | Cláudio Etges |
Em
1984 os atuadores constituíram a Terreira da Tribo, em um prédio
alugado na rua José do Patrocínio no bairro Cidade Baixa. Um novo
espaço cultural aberto a todo tipo de manifestações: teatro,
música, filmes, oficinas de arte, debates, happenings, celebrações.
O nome desse espaço feminino, telúrico e anarquista vem de
terreiro, lugar de encontro do ser humano com o sagrado. Na Terreira
da Tribo o Ói Nóis Aqui Traveiz volta à cena com a montagem de A
visita do presidenciável ou os morcegos estão comendo os abacates
maduros,
uma espécie de parábola sobre o momento político do país.
Derrotada a campanha pelas eleições diretas, o país se preparava
para a sucessão presidencial via congresso. Depois de vinte e um
anos de ditadura, um civil iria assumir a presidência, não trazendo
nenhuma mudança social significativa, além de todo o seu
comprometimento com a estrutura oligárquica que domina o país. O
espetáculo contava em tom de farsa a história de um casal de
velhos, moradores de uma casa há vinte anos, que aos poucos se
deteriora. A ação acontece no dia em que o procurador geral irá
cobrar o aluguel da casa, que os velhos não têm mais condições de
pagar. Coincidentemente, aquele é o dia em que o futuro presidente
será apresentado aos inquilinos. Metáfora da classe média
conservadora, que apoiou o golpe de 64 e, duas décadas depois, ao
perder seus privilégios, saiu às ruas pedindo Diretas Já. O
espetáculo trazia uma mistura de teatro do absurdo, sessão de rock,
cinema underground, poesia marginal e vanguarda plástica. Além de
todas as atividades que acontecem diariamente na Terreira, o espaço
oportunizava às pessoas em geral o contato com o fazer teatral.
Partindo do princípio de que toda pessoa tem um potencial criador,
os atuadores vão desenvolver, a partir de 1985, diversas oficinas
abertas à comunidade: Teatro
livre, Experimentação e pesquisa cênica, Expressão e movimento,
Teatro de rua, Máscaras e adereços, Teatro ritual,
entre outras. A Terreira consolidou o trabalho do Ói Nóis Aqui
Traveiz. Possibilitou aprofundar a investigação do trabalho do
ator e do espaço cênico. Um espaço teatral completamente flexível
e transformável de uma encenação para outra. Colocar o espectador
numa situação inteiramente inédita. Levar às últimas
consequências a relação entre ator e espectador, incluindo os
espectadores na arquitetura da ação, vendo o público
qualitativamente e não em quantidade, interessando mais a integração
alcançada. O ato teatral requer uma considerável redução das
distâncias, para que o ator possa agir diretamente sobre alguns
indivíduos. Para que o encontro ocorra, é preciso que o espectador
o deseje, ainda que inconscientemente.
É
na Terreira que a Tribo buscou o auto desnudamento do ator
grotowskiano. Ao partir do íntimo de seu ser e de seus instintos, o
ator deve ultrapassar os seus próprios limites e condicionamentos. O
objetivo e a função do ator é fazer ressoar alguma coisa na
intimidade mais profunda do espectador. Dentro desse processo de
pesquisa a Terreira vai produzir nos próximos anos o que chamou de
Trilogia
da condição humana.
Espetáculos que envolviam questões como solidão,
incomunicabilidade e finitude do ser humano. As
domésticas,
de Jean Genet, de 1985, é um cerimonial teatral, um extraordinário
jogo de aparências, no qual o imaginário e a realidade se fundem
para que através da mentira, do choque e do artificial, os
participantes do cerimonial se enxerguem diante do seu próprio
espelho. Veem-se em cena três homens representando mulheres e estas
representam papéis sociais que compreendem as relações servis de
doméstica-patroa. O universo feminino subjugado por uma sociedade
essencialmente machista. As empregadas estão presas à imagem da
patroa por uma mistura de afeição, amor erótico e ódio profundo.
Elas não conseguem deixar de imitar e desejar ser a patroa. Uma
odeia a outra porque vê na companheira a própria imagem refletida
como num espelho. Em Fim
de partida,
de Samuel Beckett, de 1986, os atuadores com extrema precisão
colocavam em cena a atmosfera angustiante dos personagens. Sentado
numa cadeira de rodas, imóvel, cego e com as pernas paralisadas,
está Hamm. Dentro de duas latas de lixo, com as pernas decepadas,
vivem os seus velhos pais. Quem se movimenta é Clov, filho adotivo e
criado do grupo. Porém, entre uma janela e outra, o que pudesse
sobrar de esperança se dissipa: de um lado, o mar cor de chumbo; de
outro, a terra desértica. Para justificar a existência, as
personagens inventam coisas banais, fazem um jogo de paciência. Ali
está o ser humano frente a ele mesmo, reduzido à sua mais radical
essência. Ao contrário de As
domésticas,
na qual as emoções exacerbadas passam por um ritmo acelerado, em
Fim
de partida
os atores têm o gesto contido, estão paralisados dentro da cena. O
ambiente é uma imagem futurista de um velho abrigo nuclear.
Sufocante, cinzento e enferrujado.
Ostal | Arquivo da Tribo |
Já em Ostal,
de 1987, criação coletiva a partir de um roteiro do grupo italiano
Confrontação, apresentado como rito teatral, a Tribo procurou
desvendar os processos esquizofrênicos que o cotidiano familiar gera
nos indivíduos. Num ambiente restrito a 20 pessoas por noite e em
caráter intimista, os espectadores-participantes vivenciavam os
conflitos de uma mulher em sua cama de doente. Nenhuma palavra era
pronunciada durante a encenação. A relação dessa mulher com os
demais personagens não acontecia no plano da realidade concreta, mas
apenas em sua mente. O público era envolvido por acessos,
alucinações, sofrimento, onde a paciente vacilava entre o desejo de
afeto e a frustração. A ligação entre as cenas de Ostal
rompia com a narrativa lógica e dependia de um tipo de associação
próxima da loucura ou do sonho. A performance recorria a estímulos
sensoriais diversos e as personagens eram antes personas
buscando uma dilatação da presença e do gesto, desencadeando novas
conexões e novos sentidos para o espectador. Refletia alegoricamente
o processo de adaptação social a que o ser humano é submetido
desde a infância. Fim
de partida
e Ostal
receberam os principais prêmios da crítica. Entre a temporada dos
dois espetáculos o Ói Nóis Aqui Traveiz montou Manchas
no lençol,
que reunia cinco esquetes em teatro de sombras criados na Oficina
de experimentação e pesquisa cênica.
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