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por Valmir
Santos (Cavalo Louco - Revista de Teatro, dezembro de 2008)
Fotos de Pedro Isaias Lucas
Fotos de Pedro Isaias Lucas
Tribo de atuadores Ói Nóis Aqui
Traveiz concebe espetáculo monumental ao dramatizar trajetória de
Carlos Marighella com seu Teatro de Rua vez mais essencial e
sofisticado.
O
audiovisual brasileiro gosta de visitar o docudrama, gênero de
inspiração européia ou norte-americana que evoca fatos à luz de
registros históricos e licenças ficcionais. No telejornalismo
nacional, essa opção tem sido explorada em reconstituições
afetivas ao sensacionalismo. No cinema, o percurso é mais elaborado
por conta de uma tradição de documentários puro-sangue que vem
desde os anos de 1960 e ganha contornos sofisticados a partir da
presente década. Eduardo Coutinho sintetize essa ponte, vide Cabra
marcado para morrer, obra-prima dos anos de 1980, e o recente jogo de
cena, que borra de vez as fronteiras.O prólogo cinematográfico aqui
aplicado serve à interpretação de que o novo espetáculo Tribo de
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz equilibra consistência documental
sobre o guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) com extraordinária
vitalidade para reinventar o seu próprio modo de criação quando o
assunto é teatro de rua,lá se vão 30 anos de uma linguagem ímpar
que não poupa ousadia e coragem.
Mas
esses substantivos femininos de nada valem se não traduzem Arte.
Felizmente, o que se vê em O Amargo Santo da Purificação - uma
visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do
revolucionário Carlos Marighella é o teatro de rua elevado à
categoria de Arte como poucas vezes nos deram notícias a
historiografia cênica brasileira. Estamos na primavera de 2008 e a
estreia dessa criação coletiva denota grau de complexidade com
que suas cenas são construídas. Constata-se uma linguagem derivada
de elementos essenciais a contrapor distorções como a do “Teatro
menor”, eufemismo grosseiro pespegado sobre o Teatro de Rua em
murmúrios e entre muros. Teatro ou é ou não é, quer no palco, ao
ar livre ou sob o teto de zinco do Barracão.
A
estrutura dramática precipita fotogramas que encadeiam a imagem do
todo no cinematógrafo. Colados ao ar livre, esses pedaços de
passado e de agora tocam o homem e o guerrilheiro em foco. A
perspectiva que a tribo de atuadores expõe, sem obviamente ocultar
aquela do cidadão que lutou contra as ditaduras de turno, é a do
ser que trazia dentro de si potências de poeta, de afirmação do
viver pela alegria, como na devoção ao carnaval. A montagem tem um
mérito de desfazer a pecha de um Marighella mal-assombrado que os
regimes autoritários lhe impigiram entre as décadas de 1930 e 1960,
primeiro no Estado Novo, sob o governo Getúlio Vargas, depois sob o
comando (e as botas) dos militares propriamente ditos. O projeto
cênico converte-se em contribuição fundamental do Teatro para ler
os processos históricos do Brasil e vem somar-se às revisões,
bibliografias e cinematografias realizadas nas últimas duas décadas.
Uma
das virtudes do Teatro de Rua do Ói Nóis é justamente o senso
apurado na ocupação do espaço público. Sua nova peça expande e
recolhe o campo de ação com habilidade para não rechaçar o
espectador feito joguete. Estabelece a itinerância sem ser
impositivo, menos quando a cena assim exige, como na truculência dos
militares. Logo no início, o território é delimitado pelos
extremos. Um núcleo de atores desponta por um lado, com vestimentas,
danças e cantorias de raízes africanas.Distante algumas quadras,
segue em cortejo coreografado para o epicentro do Largo. O público
que o acompanha surpreende-se quando nota outro coro se aproximando.
Artistas paramentados lançam mãos de passos, movimentos, vozes e
instrumentos de extração italiana, também com outra porção de
populares em seu encalço. A narrativa principia na pororoca, como a
endossar um contrato de que, sim, vamos transitar por caminhos
ancestrais da ascendência formadora do Brasil Marighella, além de
abrir flancos para a comédia Dell'art, suas máscaras-preço do
Teatro de Rua. E com permissão para injetar efeitos de modernidade,
de contemporaneidade cênica em meio a tantos pendores arcaicos
assentados na realidade histórica brasileira.
Eis,
pois, o contexto em que é tratado o documento. Ele é reavivado pela
Arte. A despeito da contundência de seu tema-personagem, o trabalho
não descuida da teatralidade. Ela vem antes do discurso, da
mensagem. Ou melhor, no entremeio.O impulso criado fala por si. Para
quem viu o Ói Nóis nascer em 1978, no período da ditadura militar,
ou mesmo visitou seus arquivos, fica evidente que naquele tempo era
preciso vociferar, e ponto, tantas as liberdades estranguladas. Já a
configuração de coletivo nestes anos 00, zero-zero, em produções
como Aos que virão depois de nós – Kassandra in process, sob o
desígnio do Teatro de Vivência, esmerar-se em não perder o prumo
estético para dizer a que veio. Como em toda obra erguida na
terreira da tribo, a sede do grupo, mesmo se o fruto de uma Oficina,
O Amargo Santo da Purificação é sustentado por sólida base de
pesquisa teórica e documental. Todos os 25 atuadores dessa
encenação, além do seu corpo técnico, têm ciência do objeto
demasiado humano com o qual estão lidando. Por isso o domínio
absoluto nos mínimos detalhes da composição musical variada, densa
e lírica na medida dos atos; da confecção de bonecões disformes;
das máscaras a replicar o mundo animal em metáforas mais perfeitas
para o espectro político (ratos, galinhas, macacos); da costura
paciente em crochê; e dos triciclos lúdicos que lembram as
carruagens romanas. Ou seja, empresta-se ao fazer teatral um tanto do
ofício do artesão.
O
Risco de Martirizar
Quando
a tribo evoca “vida paixão e morte do revolucionário” no
subtítulo, pode-se supor o viés cristão. Mas a fé manifestada não
é a meramente religiosa; a artística, a fé na força mobilizadora
do Teatro. O roteiro de cenas não oculta, e nem seria o caso, os
tormentos sofridos por Marighella em consequência da militância
incondicional, a utopia socialista em defesa dos Operários e
camponeses. No entanto, no conjunto, o espetáculo não sucumbe à
martirizarão, como dá entender o complemento do título. Relemos: O
Amargo Santo da Purificação – uma visão alegórica e barroca da
vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella. O
enunciado soa auto-explicativo e bastante redutor das complexidades
ensejadas no bojo dessa criação. Parece não querer que o
espectador encontre e abra suas próprias janelas. Um subtítulo que
sugere definir tudo, os modos de expressão, o ciclo do biografado. E
acaba destoando da proporcionalidade dos vetores dramáticos que, por
exemplo, revelam tanto o homem que defendeu a luta armada para
resistir quanto o mulato baiano que jogava capoeira. Universos
antípodas assim, unidos no tempo do Teatro, ganham outras dimensões
aos olhos deste Século XXI. Ao deparar com seus contrastes, o
espectador vai compondo um retrato do ontem e do hoje, e é isso que
a representação possibilita, ao contrário do maniqueísmo
induzido. O bem e o mal são estanques, eles se comem feito luz e
sombra. Já o título em si, O Amargo Santo da Purificação, é mais
pertinente em suas contradições, traz um ruído bom. Santificar o
fel para limpar as máculas? A pergunta dá a ideia dos pretextos a
suscitar.
É
antológica a forma como esses atuadores reconstituem a linha
cronológica, os momentos históricos cruciais nos planos pessoal e
coletivo. Concebe-se de forma didática, na melhor acepção, uma
evolução dos fatos e afetos em torno da figura de Marighella. A
transposição do documento para a cena (documento entendido como um
levantamento de todo o material que subsidiou a montagem) não
resulta decalque. À dramaturgia que costura poemas do próprio
personagem-título, o Ói Nóis comete intertextualidade. Tece
minúcias que atravessam os números musicais, em solos e coros,
desfraldam estandartes e alcançam um registro fino na preparação
dos intérpretes, na projeção da voz, na expressão do corpo, do
olhar, do rosto, da sobrancelhas, um redobrar de atenção que o
Teatro de Rua pede porque in loco, desarmado de macetes, como o grupo
está calejado de saber. Mesmo quando nos episódios mais fiéis à
realidade histórica, predomínio de tons cinza e preto e branco, a
reconstituição não resulta distanciada, fria. A vibração
artística também precisa traduzir o lado inimigo. O monstro
alegórico ilustra o aparato bélico na implantação do AI-5, o ato
que endurece o regime a partir de dezembro de 1968, é outro daqueles
instantes cinematográficos do espetáculo, com direito a fumaça,
que solta da parafernália mecânica, desestabilização da roda de
público por conta do pânico que se instaura com tortura física e a
transmissão radiofônica da palavra de ordem dos generais. Ou ainda
a cenografia algo bucólica da paulistana Alameda Casa Branca, em
cuja pedras de paralelepípedo caiu o corpo de Carlos Marighella,
fuzilado numa emboscada.
Em
sua unidade-caleidoscópio, à la Glauber Rocha, a contracenar
Corisco, Getúlio Vargas, Médici, o cancioneiro de Vandré, a
manipulação de futebol no “para
frente, Brasil”,
a crença absoluta da liberdade encarnada na atuadora-menina vestida
de branco, em meio à soldadinhos no chão coloridas bexiga soltas no
céu, a aventurosa Tribo projeta um documentário épico monumental
sobre a história contemporânea do Brasil. Em uma certa medida,
Lembra o que a companhia de teatro de rua Royal de Luxe fez em “A
verdadeira história da França”, que passava a limpo o passado
daquele país, como se viu na apresentação ocorrida em São Paulo,
em 1902, no Vale do Anhangabaú. Evidentemente, o Ói nóis não
maneja a cenografia os recursos técnicos naquela escala de
superprodução; o monumental, no caso, é de outra ordem.
Está
em pauta o Brasil ora acusado pela Organização dos Estados
Americanos (OEA) de proteger os militares que torturaram,
assassinaram e desapareceram com presos políticos. A nação que ora
assisti à peleja do Ministério Público, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos e do Ministério da Justiça contra a advocacia
Geral da União que brande a Lei da Anistia para impedir de levar a
júri os coronéis Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos
Maciel. A resistência armada, quem diria, resistência militar em
mais de duas décadas de dita democracia representativa. O Amargo
Santo da Purificação perscruta os cadáveres vivos da história,
mostra um espelho gigantesco, instaura a indignação, cobra os
valores humanos, melhor, mil vezes melhor, faz tudo isso se trair a
vocação artística do Teatro de Rua. Por onde passa, devolve o
lugar público ao cidadão. Situa-o quanto a capítulos decisivos da
vida política e da vida social. E não lhe nega o direito a sonhar
por meio da brincadeira, do riso, da poesia da dor e da lágrima
deitada quando da falta de gentileza com que esta Pátria trata os
filhos teus.
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