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Santos Amargos



Paulo Bio Toledo - (Cavalo Louco Revista de teatro, dezembro de 2009)

[...] O dom de Despertar no passado as centelhas da esperança é um privilégio exclusivo do Historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Walter Benjamin
Sobre o conceito da história

Necrofilia é o amor ao futuro
Heiner Müller


Fotos de Pedro Isaias Lucas 
 

Anjos

A famosa metáfora do anjo da história do pensador alemão Walter Benjamin – interpretação poética da pintura Angelus Novus, de Paul Klee – retrata um anjo que observa o passado amontoado de entulho e destroços da civilização, mas não pode parar, é incessamente puxado ao futuro pelos ventos do Progresso.

Heiner Müller reescreve a imagem. Seu anjo olha a frente. Observa o futuro “represado, esmagando seus olhos”, mas a pilha de destroços é mais rápida que ele e o comprimento no instante: entre o passado e o futuro.Imobilizado, esmagado. Até que: “um renovado rufar de poderoso bater de asas se propague em ondas através da pedra e anuncie seu voo”.

O olhar à nossa obscura história pelos olhos da Tribo Ói Nóis Aqui Traveis é a propagação da pedra, que pronuncia o vôo. Imobilizam um instante, uma reminiscência de um passado recente – Carlos Marighella e seu assassinato pelo aparato repressivo da ditadura militar brasileira – e sua imagem extraem estilhaços de esperança.



O Amargo Santo da Purificação.

A tribo de atuadores ói nóis aqui traveiz possui 31 anos de história. Surgiu dia 31 de março de 1978 no momento histórico de reorganização das forças de resistência ao regime ditatorial brasileiro e, simbolicamente, na véspera do aniversário do Golpe Militar. Um grupo intensamente crítico e provocativo, que aparece questionando os aparelhos normativos, burgueses e institucionalizados do teatro. Adiante, em três décadas de trabalhos, o grupo construiu um paradigma de atuação teatral coletiva que rompe, fundamentalmente, com a conceituação da arte sublime e burguesa, privilégio de poucos; realizando, para tanto, intensas pesquisas estéticas aliada de atuação política e social cada vez mais aprofundada.

O Amargo Santo da Purificação é o novo espetáculo da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – Faz parte da vertente de Teatro de Rua do grupo. Fragmentos da vida particular e política do revolucionário brasileiro Carlos Marighella são levados às praças e ruas miscigenadas de nossas terras brasileiras.
Domingo à tarde.

Faz muito sol, e calor. Ao longo da peça, o público cresce e se renova: famílias que divertiram seu domingo na praça, jovens que jogavam futebol, muitos meninos montados em bicicletas, crianças, o público especializado de teatro (em menor número é claro, devido, acredito, à distância do Campo Limpo – um pouco além do aconchegante antro Sesc e afins – mas isso é outra discussão) bêbados, vendedores de sorvetes gritando e toda a sorte que se pode encontrar em qualquer praça das periferias do planeta – ademais a ilustre viúva do protagonista: cabelos brancos e um relógio de pulso com uma brilhante estrela vermelha no centro.

Um conjunto de cenas passa ser apresentado. Não contém em si uma linearidade clara, nem um ponto de referência histórico pedagógico. Fragmento da história pessoal e da política nacional brasileira são contados e alegorizados com corpos dinâmicos, ativos, presentes, grandes objetos de cena (como o carro do Progresso, uma máquina enorme acinzentada sobre rodas cuspindo som e fumaça) é intensas musicalidades africanas, brasileiras, italianas. O evento chama demais a atenção.

Uma mãe, com duas crianças de olhos vidrados, questiona: “eles deviam por o significado das coisas” (e ri para si mesma) – ficariam lá, os três, até o fim. Perto deles, um grupo de meninos sem camisa em bicicletas (desses que deixam a nós, habitantes do centro privilegiado, um tanto temerosos); estacionaram ali rindo uns para os outros; de todos destaca-se um, mais alto, sério, quieto, bonito, posição central, parece que cada passo que os outros dão, antes olham para ele; o grupo gera a sensação de iminente intervenção provocativas na peça. – Mas ficam ali, parados. Uns saem, cansam-se, voltam ao futebol. Mas ele, o do centro, fica. Olhos frios, expressão impassível. Quando o espetáculo muda de lugar (já próximo do fim) eles perdem a posição privilegiada, ainda circulam um pouco em volta, mas resolvem ir embora. Ele pedala mais lentamente, já ao longe, olha para trás, mantém um olhar por 3 segundos e segue.

Dialética da Revolução.

Carlos Marighella representa na história recente do Brasil um paradigma do Herói político e humano. Um mártir da luta armada contra o autoritarismo do regime militar, não afeito à normatização da luta ou à burocratização das organizações partidárias comunistas: foi sujeito da sua própria história. Postou-se na frente todo tipo de poder e desafiou-o.

Todavia, Marighella representa também a figura do herói mítico digerido pela complexidade do capitalismo contemporâneo. Motivo de filmes atuais de caráter pouco crítico e com circulação e financiamento proporcionado por grandes corporações privadas – as mesmas que antes apoiaram o poder autoritário militar, algoz de Marighella.

Mas, pela dialética da figura histórica, do contexto político e da força heroica de Marighella, surge um teatro que ressuscita essa memória pontual na figura de mil, de um coletivo – como a própria práxis de funcionamento do Ói Nóis Aqui Traveiz, nesses 31 anos de existência. Capta e sublinha uma reminiscência do passado, pouco a pouco apagada e silenciada nos porões da história dos vencedores, e faz do ato teatral uma ação política contraponto ao escancarado processo de revisionismo histórico operado pelas classes dominantes hoje – Cujo maior exemplo foi o perverso neologismo criado pela Folha de São Paulo (às vésperas da “comemoração” dos 45 anos do golpe), ao caracterizar o totalitarismo militar brasileiro de “ditabranda”.

A exaltação, no final do espetáculo, pela abertura dos arquivos da ditadura demarca de forma enfática a posição política de luta e resistência ostentada pelo grupo. Sua intervenção teatral com Carlos Marighella conclama o Brasil à urgência de reviver seus mortos; abre “uma clareira, em meio ao Bosque”. 


 

Ação e Intervenção Pública

Há de se destacar, fundamentalmente, a estrutura da peça em relação a sua temática. A manifestação de espetáculo configura-se como a superação do teatro de rua simplista e de proporções delimitadas. O Amargo Santo da Purificação impõe-se no espaço público Urbano e realiza um acontecimento de enormes proporções em meio a rotina cosmopolita. Desde o início do espetáculo investe-se numa ação que impossibilite a pura contemplação estética da cena: a peça começa, por exemplo, com dois grupos (italianos e africanos) em pontos distintos, numa dança que os impele ao encontro “miscigenador” que dará à luz Carlos Marighella. Como público, ficamos encurralados no meio desse movimento e obrigados a “escolher” um dos coletivos para seguir. Adiante a enorme máquina do progresso e da opressão invade o tradicional círculo do teatro de rua e transforma toda a perspectiva do público; obrigando-nos, novamente, a nos posicionar e a ”escolher” um novo ângulo de observação frente a essa nova configuração proposta.

Ademais, a fragmentação da narrativa, a teatralidade popular, a musicalidade constante, a justaposição de tempos cronológicos e estímulos de encenação e a relação com o público – determinada por uma proximidade imanente da presença, do ardor da realização e, mais importante, do olho no olho – propõe um experimentalismo poético intenso que sublinha a manifestação teatral enquanto encontro entre público, e atuadores e espaço. Emergindo, dessa forma, um acontecimento público, artístico e político que não deixa nada ao redor incólume.

Cada paragem de o Amargo Santo guarda até hoje vestígios de sua passagem...

Entre Ruas
No entanto, seria impossível intervir publicamente com o teatro em ruas e calçadas tão diversas sem transformar o fenômeno em si mesmo. Desse modo, as apresentações do espetáculo na cidade de São Paulo criaram relações bastante singulares de relação com a obra. Em outubro de 2008, apresentaram-se numa praça de distrito do Campo Limpo, zona oeste de São Paulo; no início de 2009 voltaram a cidade, só que agora ocupando sua caótica Praça da Sé – epicentro fisiológico das artérias paulistanas; por fim, no final desse mesmo ano, fizeram outras duas apresentações: uma no estacionamento do memorial da Resistência (antigo DOPS) e outra no Vale do Anhangabaú, como parte da Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua.

Pode-se dizer que um espetáculo de rua só é realmente visualizado quando em relação objetiva com o espaço em que se apresenta, ou seja, é extremamente difícil aprender o fenômeno artístico de rua por si só, como obra fixa e acabada, pois sua mutabilidade em imensa e depende intimamente das particularidades do local público e de suas eventualidades... Sendo assim, o caráter efêmero e único de intervenção urbana como essa é fator constituinte da obra e deve sempre ser levado em consideração. Tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em Três dos espaços descritos acima e a somatória desses diferentes, fenômenos/acontecimentos pode ser um fragmento de síntese da relação momentânea e imprevisível entre a rua e o espetáculo.

Fragmentos fenomenológicos – Campo Limpo

A apresentação ocupa uma praça na periferia de São Paulo num final de semana. Faz muito sol e calor. A população por ali é composta dos frequentadores habituais do Lazer público das praças urbanas: um público que cresce e se renova: famílias que divertiam seu domingo na praça, jovens que jogavam futebol, muitos meninos montados em bicicletas, crianças, bêbados, vendedores de sorvete gritando e toda a toda sorte que se pode encontrar em qualquer praça das periferias do planeta – ademais, a ilustre viúva de Marighella: cabelos brancos e um relógio de pulso com uma brilhante estrela vermelha no centro.

Um grupo de meninos sem camisa em bicicletas (desses que deixam a nós, habitantes do centro privilegiado, um tanto e temerosos) estacionou ali rindo uns para os outros. De todos destaca-se um, mais alto, sério, silencioso, bonito, posição central, liderança inquestionável: cada passo que os outros dão, antes olhavam para ele como se investigassem uma aprovação tácita. O grupo gera a sensação de iminente intervenção provocativa na peça – mas ficam ali, parados, olhos fixos. Uns saem, cansam-se, voltam ao futebol. Mas ele, o do centro, fica. Olhos frios expressão impassível. Quando o espetáculo transforma-se espacialmente eles perdem a posição privilegiada, ainda circulam um pouco em volta, mas o resolvem ir embora. Ele pedala mais lentamente que os outros. Já ao longe, ele para sem aviso prévio, desce da bicicleta... Olha para trás, mantém olhar por três segundos e segue... Com as retinas marcadas pela luta armada de Marighella.

No fim da apresentação de o Amargo Santo da Purificação balões de liberdade e esperança são soltos ao ar, mas na armadilha da Periferia paulistana do Campo Limpo eles logo se enroscam na fiação elétrica entrelaçada e caótica, como a vida em nossa cidade. Com ímpeto e força soltaram se e seguiram por mais um pouco... Mas um novo emaranhado energético os fisgou e ficaram ali, poucos metros de onde saíram, esfregando na nossa cara que a sensação de felicidade esperançosa dura pouco e que a luta é mais dolorosa que romântica e infinitamente longa. Por outro lado, ironicamente, os balões tornam-se, ali enroscados, o vestígio vivo da esperança num lugar esquecido que. Provavelmente, por mais longos anos cumprirá sua rotina, sem qualquer sombra de teatro.

Fragmentos fenomenológicos – Praça da Sé

A Praça da Sé é um fenômeno Urbano. Poucos lugares no mundo devem agregar tamanha Babel de sotaques, línguas, crenças, miséria, fartura, barulho e movimento. A Praça da Sé é o coração sobrecarregado da São Paulo combalida. Vêem-se a céu aberto todas as pontes de safena e as cicatrizes escancaradas das inúmeras operações que buscaram prolongar em alguns míseros anos a sobrevivência das nossas veia de concreto.

Mas chega Marighella e a luta armada de olhos revolucionários da Tribo de Atuadores. Naquele dia, se não houve uma revolução propriamente dita, Houve a imagem de uma revolta das paisagens urbanas. Poder-se ia definir o termo “intervenção Urbana” com o acontecimento dessa tarde. A representação rompeu o descontrole organizado da Praça da Sé, invadiu a rua, moveu uma multidão que se estapeava para ver alguma coisa. Crianças penduradas no postes e moradores de rua gritando e organizando para que os pedestres saíssem do caminho, como se fossem eles que estivessem proporcionando aquele espetáculo. Um acontecimento.

No fim, os balões voaram (a Praça da Sé relativamente livre das fiações), mas um senhor com cara de cansado – talvez um desempregado que passou o dia todo buscando algum “bico”; vê aquela agitação do fim da peça e grita: “greve não minha gente! greve não, seus vagabundos! Vamos trabalhar”. Era São Paulo, requisitando sua avaria padronizada e cotidiana...



Fragmentos fenomenológicos – Vale do Enhangabaú

O Vale do Anhangabaú fica a poucas Quadras da Praça da Sé, no entanto foi à distância é oposta ali no gramado, descansam trabalhadores no horário do almoço jovem se arriscam em manobras de skate e namorados após alguns minutos de encontro em meio ao caos. é como uma ilha.
Lá, São Paulo abriu a clareira de Marighella, a cena ficou especialmente imensa, a roda ganhou uma amplitude gigantesca. E, num desses Milagres pós-modernos, São Paulo silenciou... A impressão pode ser falsa e meramente fruto de uma imaginação cansada,no entanto a impressão foi a de que quando representada a cena em que Marighella é encurralado na Alameda Casa Branca todo o Vale do Anhangabaú silenciou: skates pararam os caminhões da Prefeitura desligaram o motor, cessaram as sirenes da polícia circundante... Por alguns segundos São Paulo viveu um instante “esmagado entre o passado e o futuro”... Destacou-se da história diria Walter Benjamin com o fenômeno de um relâmpago que por alguns segundos marca uma imagem estática e silenciosa no céu e depois desaparece.

Depois voltaram os trabalhadores, as crianças imundas, os moradores do vale embriagados, os policiais e suas sirenes, os executivos de passos assustados, as nuvens negras, a chuva intermitente, as filas esmagadas no Metrô, o trânsito sem respiração, as horas aceleradas, a opressão atmosférica do capital.

Mas a Alameda Casa Branca mudou de nome... Por alguns instantes... Entre o passado e o futuro...

Sobre meios e formas

Altamente relevante é a forma do espetáculo. A fragmentação, a teatralidade popular, a musicalidade constante, a justaposição de tempos e estímulos e a relação com o público – oposta à tendência Geral do teatro de rua (brincadeiras com as pessoas, relação direta, piadas e pegadinhas, etc.), mas afirmando uma proximidade imanente da presença, do ardor da realização e, mais importante, do olho no olho propõem um experimento estético, que sublinha a manifestação teatral enquanto encontro (principalmente em locais “em crise”, como as periferias das grandes cidades) em consonância com o conteúdo abordado: um mito brasileiro da resistência humana contra opressão.
Resta-nos entender esse Marighella como sujeito, e não objeto, de nossa história de passividades generalizadas. Como libelo pela retomada do olhar sobre as contradições históricas da ditadura militar que gerencia o Brasil por tantos anos (1964 – 1985) e sobre períodos igualmente obscuros como o Estado Novo getulista. Como a “abertura da clareira, em meio ao Bosque” – tanto em termos artísticos, quantos políticos. E como esperança, na luta contra inimigos que “não tem cessado de vencer”.

Epílogo

Última cena: balões de liberdade esperança são soltos ao ar. Em São Paulo, na Praça do Campo Limpo, eles logo se enroscam na fiação elétrica, com ímpeto e força soltaram-se e seguiram por mais um pouco, mas um novo emaranhado energético os fisgou e ficaram ali, poucos metros de onde saíram, esfregando na nossa cara que a sensação de felicidade esperançosa dura pouco e que a luta é mais dolorosa que romântica e infinitamente longa.Por outro lado, ironicamente, os balões tornaram-se, ali enroscados, o vestígio vivo da esperança num lugar esquecido que por mais longos anos cumprirá sua rotina, sem qualquer sombra de teatro

1.109km de distância entre Porto Alegre e São Paulo