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Iná Camargo
Costa
Fotos de Claudio Etges
Para os interessados
num teatro exigente, a notícia da montagem de uma peça como A Morte
e a Donzela de Ariel Dorfman não chega a ser propriamente
estimulante, porque o texto traz as marcas de uma dramaturgia muito
presa ao que se convencionou chamar de realismo. Essa primeira
reação, que explicaremos em seguida, fica entretanto imediatamente
abalada, transformando-se em genuína curiosidade após a leitura da
Revista-Diário de Ensaio onde a Tribo
de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz expõe
os motivos de seu interesse pela peça, as etapas da criação do
espetáculo e as observações dos participantes sobre o conjunto da
experiência. Finalmente, comparecer à Terreira
da Tribo e,
desde a entrada naquele espaço (digamos: uma alegoria finíssima de
um campo de concentração) até o final do espetáculo (um achado
cenotécnico brilhante para referir o modo como todos estamos sendo
soterrados nestes tempos de pseudodemocracia hipócrita), receber
todos os impactos – visuais, táteis e auditivos – preparados por
esse grupo genial, transforma a dúvida inicial em surpresa das mais
agradáveis e a surpresa no que chamaríamos, se nos for permitido o
aparente abuso dos termos, em alegria estética.
É claro que tanta
surpresa só se explica por ser a autora destas linhas uma professora
universitária presa em São Paulo a seus compromissos didáticos e
de pesquisa no campo da história da dramaturgia e da teoria teatral
que, por isso mesmo, nunca estivera em Porto Alegre, não pode
freqüentar festivais de teatro e, nessas condições, nunca sequer
tinha ouvido falar na Tribo. Quem já conhece o grupo talvez se
limite a constatar as suas grandes qualidades, que não são poucas.
Mas é possível que o registro das razões objetivas daquela
agradável surpresa contribua para uma compreensão mais fundamentada
da tremenda importância do trabalho deste grupo.
Para ficar apenas num
tópico, A
Morte e a Donzela expõe
a hipocrisia das democracias ao sul do Equador, que pagam altíssimo
preço em sofrimento humano por terem cedido à chantagem dos
expoentes das ditaduras que bateram em retirada, mas permanecem em
estado de prontidão (em graus variados, conforme o país). Esta
questão se arma principalmente no conflito entre o jurista membro de
um comitê federal de investigação dos crimes políticos e sua
esposa, a vítima-sobrevivente do terrorismo de Estado. Em linha com
os pressupostos estético-políticos de Ariel Dorfman, o texto foi
pensado e escrito segundo as convenções modernizadas do teatro
realista. Basta pensar que o dramaturgo imagina o principal da cena
se desenrolando na sala de visitas da residência do casal e que um
desdobramento pesado, no mau sentido mesmo, dessa idéia é o acúmulo
de funções do diálogo. Em poucas palavras, uma produção que
acatasse as convenções propostas pelo dramaturgo resultaria em
espetáculo pesado, arrastado, difícil de se assistir.
Percebendo a
importância, inclusive política, dos problemas trabalhados e
sugeridos pelo texto, e para melhor servi-los, a Tribo tratou de
desobedecer, com requintes de miniaturista, cada detalhe da sua
letra. Lançando mão de amplo repertório cênico, desenvolvido em
quase vinte anos de experimentação, criou um espetáculo poderoso,
de grande impacto visual. Desenvolveu cenas mudas, paralelas ao
texto, que em alguns momentos o comenta, em outros o critica e, em
outros ainda, explicita algumas de suas vitalidades. Um exemplo deste
último caso é o momento, visualmente fortíssimo, em que Gerardo
desenterra da areia uma corda de navio. No plano da dicção dos
atores, foram criados ritmos, importações, texturas de voz, etc.
que, aliados a uma movimentação minuciosamente coreografada,
permanentemente impedem uma audição “natural” do texto. Tudo
isso, mais os recursos cenográficos e adereços, de sonoplastia e
iluminação, concorre para a criação de uma História (com
maiúscula sim senhor) que põe tudo em cena: o presente, o passado,
o enfrentamento dos interesses mesquinhos, os motivos torpes, o
inconsciente, o pesadelo e, para não entrar numa enumeração
infindável, através de Paulina, a reivindicação de uma vida em
moldes mais humanos que, segundo Ariel Dorfman, talvez dependa mesmo
da intervenção feminina.
Para quem sempre
advogou a total liberdade de tratamento do texto no teatro, por
acreditar que a atitude dos criadores de um espetáculo em relação
ao texto já é, ela mesma, muito significativa, assistir a esse
trabalho do Ói
Nóis Aqui Traveiz é
uma alegria, pois ele demonstra cabalmente uma tese de Maiakóvski: o
original deve ser alterado pela cena, corrigido e muitas vezes até
mesmo contrariado se o objetivo for apresentar ao público uma
experiência artística de alto nível e comprometida com os
problemas de seu tempo.
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