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Iná
Camargo Costa
Fotos de Claudio Etges
Na
Alemanha os juízes cometem infinitamente mais iniquidades quando
aplicam as leis do que quando as transgridem.
Brecht,
1930
“O
acusado, portanto, agiu em legítima defesa, tanto no caso de ter
sido realmente ameaçado quanto no caso de apenas sentir-se
ameaçado”. Com esta sentença, síntese da Justiça numa sociedade
de classes, o Juiz da peça A exceção e a regra absolve o
comerciante acusado do assassinato de seu empregado durante a
travessia de um deserto. A vítima se aproximara do patrão com um
cantil para dar-lhe de beber temendo que este morresse de sede, caso
em que com certeza seria condenado por assassinato. Confundindo o
cantil com uma pedra e convencido de que o trabalhador tinha todos os
motivos para atentar contra a sua vida, o patrão nele atira à
queima-roupa. Por esta sequência de cenas, é legítimo concluir,
adaptando o ditado dos antigos, que o trabalhador está morto por ter
cantil e morto por não ter. Já o patrão sempre vai agir em
legítima defesa: as leis estão aí para garantir.
Este
é o teorema central da peça de Brecht, que também é um
convite ao exame da ideia de que o poder Judiciário é expressão
em última instância do medo que a classe dominante tem dos
dominados. Esse medo é tanto maior quanto maior a percepção da
violência necessária ao exercício da exploração do trabalho e,
ao mesmo tempo,
do quanto a realização de grandiosos projetos econômicos depende
essencialmente dessa exploração. Angustiado pela necessidade de
enfrentar a concorrência, se possível eliminando-a, e aterrorizado
pela simples ideia de que o trabalhador possa reagir a seus
despropósitos segundo a lei de Talião, o comerciante não pode
imaginar que o trabalhador oprimido, sabendo-se sem nenhum direito,
descarta a priori qualquer tipo de reação violenta. Digamos que
este membro da classe dominante vive uma situação em que está
difícil confiar na força da ideologia. Cometendo o desatino de
destruir quem lhe asseguraria a vitória sobre os concorrentes, pelo
menos resta ao comerciante o consolo de saber que a Justiça está a
postos para evitar que ele responda pelas consequências de seu
crime.
A
exceção e a regra foi o último dos experimentos didáticos de
Brecht. Por motivos enraizados na história dos últimos dias da
República de Weimar, quando os social-democratas ainda estavam no
poder, não chegou a ser encenada nem pelos comunistas. Talvez porque
àquela altura um ataque dessa ordem à idéia de Justiça (tão cara
ao povo alemão, como se viu na peça e na vida real a partir de
1933) não estivesse nos planos de ninguém.
Ficou
entretanto o convite à reflexão, devidamente aceito pela Tribo
dos Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis em 1987 e retomado no ano do
centenário de Brecht. O avanço da Tribo foi conceber a produção
da peça desde a primeira vez como espetáculo de rua, provavelmente
considerando que aí estão os maiores interessados em verificar que
a ideia de Justiça como legitimação de iniquidades é mais que
uma impressão subjetiva.
Os
achados da primeira produção foram preservados e intensificados
nesta segunda: jogo bem pensado das cores vivas dos figurinos;
adereços e maquiagem muito expressivos; trilha musical intensa;
coreografia funcional a serviço da produção de ambientes e climas
psicológicos; e atores sobre pernas de pau.
O
grupo chega ao local da apresentação desfilando como um cordão
carnavalesco e desde esta chegada a sequência das cenas elabora um
rigoroso código visual a serviço do texto e seu teorema básico. E
nesse código a cena impressionante em que o juiz gigantesco, como um
abutre caindo sobre as nossas cabeças, profere a sentença de
absolvição do assassino é imediatamente decifrada como expressão
de um jogo em que as cartas marcadas o são de modo estrutural e por
isso determinam a forma do espetáculo. Fica formalmente descartada
desta encenação a hipótese - cara à hipocrisia da classe
dominante - de que a Justiça falha acidentalmente. Em se tratando
dos supostos direitos dos trabalhadores (inclusive à vida) e, no
caso, de suas viúvas, e sendo os atentados cometidos por membros da
classe dominante, é da essência da Justiça derrogá-los. Brecht
esperava que pensássemos nisso. O espetáculo da Tribo também.
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