A Casa de Fausto sob o
signo do Cruzeiro do Sul [Parte 1]
O grupo brasileiro Ói Nóis
Aqui Traveiz encena o Fausto de Goethe em Porto Alegre
Por
Friedrich Dieckmann para a revista alemã Theater Der Zeit
Ói Nóis Aqui Traveiz!
Porto Alegre, a
capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, fica perto da
costa atlântica a meio caminho entre São Paulo e Montevidéu; com
uma população de 1,4 milhões de habitantes, a cidade é uma
das metrópoles mais meridionais do planeta. O desbravamento do país
foi realizado no séc. XIX sobretudo por imigrantes italianos e
alemães. Camponeses do Hunsrück, expatriados pela pobreza e pela
fome, depararam-se aqui com uma região de colonização favorecida
pelo clima. Quanto à superfície, o estado é maior do que a
República Federal da Alemanha antes da reunificação. A sua
população autóctone foi fortemente dizimada: por volta de meados
do séc. XVIII, os portugueses e espanhóis se associaram para
destruir um estado e os seus habitantes, um estado, que tinha dado
aos aborígenes um espaço de vida, de trabalho e de produção
cultural sob o regime patriarcal da Companhia de Jesus. Esse estado
religioso com traços peculiarmente socialistas perdurara quase cem
anos; depois os exércitos de dois impérios coloniais destruíram
essa formação histórica, aniquilando quase todos os índios.

Porto Alegre possui
não apenas quatros universidades (duas públicas e duas ligadas
à instituições eclesiásticas). A cidade abriga também
o Instituto Goethe – um dos sete filiais do Instituto Goethe, que
testemunham no Brasil sobre a vida na Alemanha e ajudam a difundir a
língua alemã. Através de palestras, exposições e projeções de
filmes, cientistas e artistas alemães dão impulsos para a vida
intelectual da cidade e da região e absorvem simultaneamente as suas
experiências e os seus problemas: eis um intercâmbio cultural no
sentido mais pleno e rico do termo. Em Porto Alegre, o Instituto
Goethe, há muitos anos dirigido pelo Dr. Hartmut Becher, acumulou
méritos especiais no seu empenho pela vida teatral da cidade, que
funciona inteiramente sob o signo de grupos autônomos, necessitados
de múltiplo apoio. Onde não há nenhum teatro on
(grupos com
cargos regularmente remunerados), não há também nenhum teatro off;
os grupos
autônomos não concorrem em pé de desigualdade com teatros
municipais ou estaduais, mas aferem a qualidade do seu trabalho na
comparação com os seus semelhantes – com outros grupos de teatro,
que se formam para um trabalho feito na base do idealismo e fomentado
em cada caso por patrocinadores. Onde não há contratações
regulares dos artistas, o engajamento acaba sendo a base da atividade
artística.

Dentre as produções
cênicas fomentadas pelo Instituto Goethe nos tempos mais recentes
deve-se mencionar “Homem é homem” de Brecht, assim como “Eu,
Feuerbach” de Tankred Dorst e “Homem branco e pele vermelha”,
de George Tabori. A peça grotesca de Brecht sobre os militares é
apresentada numa grande sala de teatro de propriedade do município
por um conjunto formado exclusivamente por mulheres. Pode-se assistir
aos diálogos do índio e do judeu no deserto da peça de Tabori na
pequena sala do Instituto Goethe, excelentemente equipada.
Já uma outra
produção, apoiada pelo Instituto Goethe em conjunto com
patrocinadores brasileiros, não necessita nem pode necessitar de um
palco. Os atores e espectadores não se defrontam aqui naquela
bipartição espacial, desenvolvida pelo teatro europeu no decurso de
quase quatrocentos anos, em analogia ao confronto no culto divino
entre o sacerdote no espaço do altar e a comunidade na nave da
igreja. As duas partes, a atuante e a assistente, desenvolvem aqui em
espaços sempre novos uma relação flutuante, que se reconfigura de
uma cena a outra, que transforma os espectadores em participantes,
sem que a diferença fundamental entre atuar e assistir fosse
anulada. Mas ela não se deixa mais apreender naquela ordem fixa, que
atribui todo o movimento em parte aos atores, em parte à decoração,
concedendo aos espectadores a possibilidade da mudança de lugar
somente nos intervalos. O que está separado para o freqüentador das
salas de teatro há vários séculos: a fase de estar sentado diante
da encenação que se comunica em imagens e a fase do caminhar antes
do início da encenação, depois do seu término e nos intervalos,
funde-se aqui numa unidade. Não são os atores e as cenografias que
se movem diante do espectador; é o espectador que se move em espaços
cênicos, que mudam de uma cena para outra. O que ocorre aqui é o
renascimento daquele modo de representação do fim da Idade Média,
no qual os espectadores passavam de um espaço de atuação cênica a
outro, em meio à paisagem teatral, percorrendo as estações da
história da paixão de Cristo como que num calvário cênico: cada
estação era um lugar peculiar, cada transformação era um
acontecimento, que convertia o espectador em andarilho, no andarilho
que palmilhava a história do drama.

O grupo teatral
brasileiro, que logra fazer isso numa obra, que se subtraiu ao teatro
da sua época e que parecia ter sido escrita para o teatro do futuro,
chama-se “Ói Nóis Aqui Traveiz”, em alemão “Da sind wir
wieder!”. O nome sugere uma confirmação da existência diante das
forças, que tinham instituído em 1964 uma ditadura militar no
Brasil, pensando que as forças, que se empenhavam por maior justiça
social e por reformas, haveriam de desaparecer diante da sua
brutalidade. O grupo, que se introduziu como aqueles que estão aqui
outra vez, foi funda em 1977, numa época, na qual a dominação dos
generais, atrás dos quais estavam os latifundiários da região
equatorial no norte do Brasil, começou a desagregar-se: entrementes
o conjunto se apresenta numa velha fábrica desocupada, cujo aluguel
sempre é motivo de novas preocupações. O prédio construído em
concreto armado está localizado num bairro metropolitano, cujos
sintomas de decadência parecem estranhamente familiares aos
visitantes do distante Hemisfério Norte; as cidades da RDA estava
marcadas por esses sintomas de outra maneira. Parece que a
decadência, o abandono, o arruinamento da infraestrutura não são
uma característica de sociedade do socialismo de estado, mas
proliferam independentemente da estrutura político-econômica, em
todos os lugares, nos quais o progresso técnico e seus custos
sociais imensos desclassificam as economias nacionais mais pobres. O
que admira, no caso do Brasil, é que isso não tenha nenhum traço
exótico.