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Antônio Hohlfeldt (Jornal do Comércio 11 de abril de 1996)
Fotos de Aline Gonçalves
O fato de a Terreira da Tribo não ter ainda investido mais seriamente na dramaturgia de Nelson Rodrigues poderia ser considerado, até certo ponto, como uma espécie de desatenção do grupo. Isso porque, com todo o seu olhar profundamente crítico para com a sociedade brasileira, inclusive com sua mordacidade, a dramaturgia de Nelson Rodrigues tornava-se matéria prima natural para a perspectiva de trabalho do conjunto da rua José do Patrocínio. Pois se a falha existia até agora, daqui em diante não existe mais. Desde janeiro do corrente ano, o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz estreou Álbum de Família que está cumprindo, atualmente, exitosa temporada na sede do grupo.
A prática é a de sempre: grupos de no máximo vinte espectadores assistem com absoluta intimidade ao espetáculo feito deste que é, na ordem, o terceiro texto criado pelo dramaturgo, segundo com maior repercussão crítica, pois estreou em 1946, depois do extraordinário sucesso, três anos antes de Vestido de Noiva, que serviria para chamar a atenção da intelectualidade brasileira para o nome de Nelson Rodrigues. Mas o que Vestido de Noiva grangeara para o autor, Álbum de Família viria a destruir. Nem mesmo os artistas mais abertos e atuantes do momento como um Álvaro Lins ou Manoel Bandeira, souberam entender o propositado distanciamento do realismo que Nelson Rodrigues buscara, para mergulhar, profundamente, na mitologia mais primitiva das relações de parentesco e na sexualidade humana, retornando ao mito original de Saturno e da origem das clãs, em em que o pai devora os filhos para não ser ele próprio destronado por eles.
A
peça, que sofreu pesadas sanções da censura ao longo de décadas,
recebeu, na encenação da Terreira, um tratamento linear. Assim, a
versão livre, como eles preferiram denominar, que nem é tão livre
quanto se poderia imaginar, eliminou, apenas o contraste irônico do
texto original entre os retratos formais e mentirosos, e as cenas da
realidade concreta da família de Jonas. E o mais curioso é que, a
todo o momento, as falas de cada uma das personagens, especialmente
após a volta do filho Guilherme, que se encontrava num convento, são
mais do que elucidativas quanto às intenções do dramaturgo.
O que temos representado na cena é a família primitiva onde as regras da moralidade de hoje em dia inexistem. A família está num mundo regredido e primitivo, isolada de todo o universo.
Jonas é o Pai, o patriarca: ele tudo pode, até o momento em que a contestação passa a ser exercida pelos dois outros filhos machos, Guilherme e Edmundo e, indiretamente, pelo terceiro filho, o louco Nonô. A trama cresce permanentemente em tensão dramática, até o desfecho em que sucessivas tragédias ocorrem, tão ao gosto da dramaturgia que mais tarde tornar-se-ia a marca registrada de Nelson Rodrigues.
O corte exercido pela Terreira da Tribo é coerente com a linha de seus espetáculos anteriores, porque se concentra no mito. E o espetáculo de pouco mais de uma hora e quinze de duração, tem densidade, é de um envolvimento absoluto, até mesmo pela proximidade dos espectadores.
O
uso de um novo espaço para a encenação, além do mais, permite ao
espectador uma experiência ainda nova: é como se de fato, a
gente entrasse voyeur, na casa de Jonas. O espaço cênico,
preenchido por fotografias antigas e o figurino igualmente
desgastado, passa ao espectador um sentimento de decadência e
dissolução, de coisa velha, de ambiente opressor e autodestrutivo,
tão mais eficiente quanto o fato de o espaço ficar literalmente
fechado, com todas as suas janelas e portas, num calor razoável, o
que nos transmite uma como que participação no enredo que se
desenrola a nossos olhos.
O elenco parcialmente renovado do grupo, eis que o time principal estava até esta semana na Alemanha, apresentando a versão de Fausto que Paulo Flores dirigira anteriormente, mostra-se extremamente eficiente, e isso evidencia mais uma qualidade do conjunto: fica comprovado que, gradualmente, a Terreira da Tribo está de fato transformando-se numa escola de interpretação teatral.
Nilsson Asp, como Jonas, é uma figura marcante, da mesma forma que Humberto Pinheiro, na interpretação travestida de Tia Rute, concretiza com seriedade e respeito, sem qualquer afetação. Goreth Albuquerque, como Dona Senhorinha e Tânia Farias, como Glorinha, Casemiro Vasconcelos, como Guilherme e Matheus Spielmann como Edmundo, são igualmente figuras desenvolvidas cada uma com noção de especificidade, com características diferenciadoras e identificadoras. Aline Becchi vive a menina grávida e sua presença é de fato, provocativa, ao longo de todo o espetáculo. Por todo resultado altamente positivo que Álbum de Família Alcança, inclusive pela fidelidade ao clima do texto original de Nelson Rodrigues, pode-se afirmar, desde logo, que a maturidade de Ói Nóis Aqui Traveiz fica mais do que comprovada. Além disso, a existência de um segundo elenco evidência que o grupo, ao completar seus dezoito anos de atuação, está, de fato, atingindo seus objetivos. Quanto ao público de Porto Alegre, fica a certeza de que, qualquer que seja o texto ou o espetáculo existe, de fato, a marca do Ói Nóis Aqui Traveiz e, pela primeira vez, em muitas décadas, a capital gaúcha, de fato, pode afirmar, com orgulho, sediar um verdadeiro grupo de teatro. Álbum de Família é, por isso tudo, imperdível e mais uma vitória do conjunto Porto-alegrense.
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