A verdade sobre o Doutor
Fausto
O grupo brasileiro Ói Nóis
Aqui Traveiz encena o Fausto de Goethe em Porto Alegre
Por
Friedrich Dieckmann para a revista alemã Theater Der Zeit
O prédio de um andar
dispõe de um pátio interno e de uma área livre na sua frente.
Nenhum desses espaços é deixado à margem pelo grupo, quando ele
encena um texto com o “Fausto” de Goethe, cuja dramaturgia
caracteristicamente pouco amarrada se opunha de tal maneira ao
conceito e à práxis do velho teatro de cenografias móveis, que ele
era considerado não-encenável durante a vida do poeta. Encena-se o
“Fausto” inteiro, do gabinete de estudos até os desfiladeiros, e
transforma-se a obra num todo teatral, na medida em que se descobre a
correspondência espacial da sua multiplicidade cênica, a dez mil
quilômetros de distância de Frankfurt e Weimar: a casa de
espetáculos, na qual o espectador (cada noite cabem apenas trinta
pessoas) vai de cena em cena com os atores, sobe escadas, anda
tateando por corredores, encontra a saída para fora.
Isso começa na rua,
na frente do portão, e o trânsito para diante da estranha visão:
uma turba de monges e monjas envoltos em capuzes entra da rua na casa
do espetáculo, que se encontra no fim de um caminho para pedestres.
Agitando os guizos no chapéu, a figura de um bobo entra no séquito
e oferece aos espectadores, que vão atrás, a mensagem de Nietzsche
sobre o “homem louco”. No fim do caminho todos se reencontram
como que numa velha cidade alemã; diante das portas de casas
pequenas aparecem homens e mulheres, vestidos com trajes medievais, e
olham com amabilidade distanciada para os convidados do tempo
presente. Estes, por sua vez, estacam diante de um teatro de bonecos,
onde se encena com marionetes graciosamente conduzidos uma nova peça,
a peça do Doutor Fausto. Tudo isso se apresenta na roupagem da
história, mas a impressão que fica não é a das imagens de
fantasia, como no palco ou no cinema; ela é afetada pela magia,
poderíamos falar no efeito de Vineta3.
Tem-se a impressão de entrar numa região mal-assombrada e a
imperfeição da reprodução, que lembra os livros de contos de
fadas ou as feiras Strietzel4,
reforça a impressão de um sonho, ao invés de diminuí-la.
Encena-se o Fausto
inteiro, mas não o texto inteiro nem todas as cenas. Há
acréscimos na forma de enxertos textuais e invenções de imagens; o
que falta já no início da peça é, além do Prólogo no Céu, o
prelúdio no teatro. O grupo não define o seu acesso à estória
através da aposta entre Deus e o diabo, mas através do teatro de
bonecos sobre a danação de Fausto; esse teatro é colocado no
início como uma interpretação sancionada do destino de Fausto,
seguindo-se então a encenação do texto de Goethe como a história
verdadeira, que é desmentida pela leitura oficial. Num país
basicamente católico ou, mais precisamente catolizado, o grupo
recapitula o olhar do próprio Goethe sobre a matéria, garantindo-se
assim um acesso novo e independente; ele encena Goethe para
contradizer a interpretação ideológica da estória. Isso esclarece
de forma incomum o caráter oposicionista da própria peça
canonizada.
A verdade sobre o
Doutor Fausto: o espectador, conduzido para o interior, experimenta-a
no gabinete de estudos, numa sala grande e pé direito baixo,
que se apresenta como gabinete de um erudito, decorado com a mobília
do fim do séc.XIX. Figurino e interior evocam não a época do
Fausto histórico, mas a representação, que o historicismo fazia
dela – e isso é parcialmente intencional, parcialmente o resultado
da improvisação. Como não foi possível arrumar livros de 1550,
coloca-se nas prateleiras livros de 1880, ocorrendo o mesmo com as
cadeiras e os tubos de ensaio. Dessa maneira apropriada (não se deve
esquecer que não se conhece uma Idade Média européia no sul do
Brasil, mas há, isso sim, o estilo burguês do século passado) essa
história do Fausto se passa simultaneamente no seu plano temporal
original e na neo-renascença de 1880 – eis uma interferência, que
é enriquecida constantemente com outros planos de alusões.

Paulo Flores, um dos
membros mais antigos da companhia, representa o Fausto com barba
esvoaçante e aquele gesto retórico familiar ao teatro brasileiro. A
base da representação não é aquela imitatividade precisa, que o
teatro europeu incorporou a si na naturalismo, refinando e
clarificando-a posteriormente, mas a expressividade sem mediações,
uma atuação extrovertida na explanação. Mas a situação mágica
do testemunho sem mediações, que envolve o espectador confere às
expectorações do atormentado professor um caráter distinto de
encenações em qualquer outro palco. O visitante frequenta a
residência do Dr. Fausto, é colocado contra a parede, empurrado
contra os móveis e recua sempre de novo, quando o erudito
atormentado se dirige para esse ou aquele lado; ele é o participante
mudo de uma história, que soa diferente da versão oficialmente
sacramentada do teatro de bonecos. Alguns poucos foram eleitos para
perceber o que realmente aconteceu, de modo que é perfeitamente
legítimo que um cão verdadeiro, não um poodle,
entre no gabinete e assuma o seu lugar atrás do fogão, de onde ele
interfere com sons humanos nos temas fáusticos.
O passeio pascoal
é deixado de lado (os próprios espectadores fazem o passeio
pela cidade) e o fâmulo não aparece; da rejeição do cálice de
veneno a estória passa diretamente para a tradução da Bíblia e o
ronco do
poodle. Mas
nenhum estudante medieval itinerante aparece por trás do fogão e
provoca risadas no professor; quem aparece é, muito pelo contrário,
um condenado, um evadido do inferno, que baixa para o gabinete pelo
teto aberto, gradeado por caibros, e recua sempre de novo para se
proteger nas alturas das medidas contrárias de Fausto, sacudindo
cheio de temor o corpo enlameado. Kike Barbosa representa esse pobre
diabo em nudez, com flexibilidade acrobática e grande intensidade na
atuação; sua cabeça e seu corpo estão enlameados, como se ele
tivesse se libertado com dificuldade do ventre da terra. Ele
representa como se a sua vida estivesse em jogo, como se ele corresse
o risco se ser arremessado de volta às profundezas do inferno, se
ele não conseguir seduzir o doutor, e por fim ele ganha a parada: o
erudito barbudo abre a sua camisa, para que o sangue, o pacto possa
ser retirado. Nenhuma faca consegue ferir-lhe a pele, e o espírito
maligno se joga das alturas sobre Fausto, que está disposto a
assinar o contrato, atira-o no chão e suga-lhe o sangue do pacto do
peito. Esse é um dos momentos mais importantes de toda a encenação.
A imaginação de uma zona experimentada nas lides demoníacas
perpassa a cena com uma força sensual e uma energia dramática sem
paralelos. Barbosa é um ator de primeira linha e deverá tomar
cuidado para evitar a passagem de um experiente diretor de cinema por
Porto Alegre, pois nesse caso ele poderia desgarrar-se do seu grupo.

Depois do gabinete
espaçoso, de pé direito baixo, os atores e os co-atores
entram num corredor, em cuja saída se avista num balcão elevado uma
imagem animada: três figuras femininas, envoltas em panos cinzentos
de muitas dobras, que enrolam o fio do destino num fuso e cortam-no –
uma imagem como que inventada pela mão de um antigo pintor espanhol.
Através de um espaço, no qual um equilibrista despenca da corda
bamba e morre (invenções originais desse tipo aparecem sempre de
novo na encenação), chega-se por escadas e pinguelas para a cozinha
das bruxas, que é tão acanhada e sombria, que a turba dos demônios
passa dificuldades para não enfeitiçar de quebra os espectadores.
As assombrações se manifestam com proximidade física: uma Leda,
abraçada por um cisne e a bruxa nua, que desce de cima sobre o homem
sedento de vida, para despertar nele o sexo.
Ainda que de maneira
muito refletida, o teatro se vê aqui subtraído, de forma
completamente desprovida de ambições intelectualistas, àquela
bidimensionalidade, que foi a relação subjacente ao efeito
produzido por ele durante séculos a fio. O cinema e mais tarde a
televisão levaram essa essência imagética unilateral às últimas consequências técnicas, modificando-a simultaneamente na medida em
que a câmara em travelling
colocava o
espectador em meio aos acontecimentos. Aqui, no distante Brasil
meridional, foi dado o passo para superar essa relação antiga. Esse
passo foi dado por um teatro, que coloca o espectador em condições
de escolher ele mesmo o seu ponto de observação. Isso não é obra
do acaso. A linhagem dos antepassados é extensa: fazem parte dela
Artaud e Grotowski, mas também as encenações de Shakespeare da
Berliner
Schaubühne dos
anos setenta, movidas por um similar sentimento de insatisfação
diante do teatro da imagem fixa. Mas não há dúvida: Ói
Nóis Aqui Traveiz chegou
nessa casa de Fausto a um novo patamar num caminho, que contrapõe à
máquina de imagens, que é a televisão (e que é tão banal e tão
poderosa no Brasil como no mundo inteiro) uma imediaticidade, que
mobiliza com recursos teatrais e a terceira dimensão, a dimensão de
uma experiência física no espaço.