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O FAUSTO BRILHANTE


Rafael Baião*

E ou toda beleza que não é puramente bela e necessariamente belo a menos que seja (in) completo.

- Mas se é espetáculo! Logo é belo (!) (?)

- Logu é belo?

- Logo não era necessário discutir o belo e o logo nem se fala.

- Sem muito belelego vamos ao principal:

Vi o FAUSTO da Terreira, pela primeira vez, numa sexta-feira, eu acho, de 1994, setembro. Transa com beleza, a feiúra, a razão, o sentimento.

Saí me perguntando se entendi ou não, ou se era claro que tinha entendido. Quis ver de novo e vi. Tinha muita gente, uma plateia receptiva e ágil.

 

 Essa montagem do Grupo ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ é denominada missa (quem quiser, comunga). Conta a história de um sábio, Dr. Fausto, que faz um pacto com o Cujo, a fim de saciar sua sede de conhecimento. Salva-se por sua insatisfação! Tudo que Mephisto oferece – dinheiro, paixões, terras, poderes... – lhe é insuficiente. Ele ultrapassa os limites de seu cúmplice. Não se rende, não se vende; arrepende-se, transforma-se. Transmuta. Sim?

Tudo que é informado ao público antes de entrar em cena, é que deve aguardar em frente ao portão do teatro; e que saberá quando o espetáculo tiver começado.

Não se pode precisar onde é o começo: monges de negro passeiam pelas redondezas, organizam-se em procissão – cânticos, estandarte, lampiões – e encontram o público à espera; o portão se abre e o público se incorpora ao cortejo. Mas logo é barrado por um personagem lunático ou lúcido, que salta de entre as folhagens. Adverte: “Não entrem nesta cidade”. Mas todo mundo entra. Depara-se com uma vila medieval: personagens, patos, galinhas, gato e, mais tarde, um cachorro e um bode. Fausto assiste a sua própria história, representada por títeres numa carroça, onde é advertido.

Entrando inicialmente na biblioteca de Fausto – sua fonte de conhecimento, mas também sua prisão ao mundo e sua primeira ruptura – o público vai penetrar num labirinto de labirintos de cenas: túneis, corredores, escadas, sacadas, planos, antiplanos, fonte, igreja, castelo, praia, ambientes fechados e abertos. Penetramos a alma de Fausto. Circula-se duas vezes por um mesmo trajeto, sempre alterado pela riqueza plástica, a multiplicidade de cenas e um sem-número de personagens.

A cada novo espaço, Fausto é levado a novas experiências. E o público – ciceroneado por Mephisto – segue-o, ora se empoleira nos cenários, ora disputa o campo de ação com os atores, podendo dançar, beber... ao espectador é dada, curiosamente, a tríplice possibilidade de ser:

- plateia – assiste a história do Doutor Fausto.

- personagem – é uma extensão do Fausto; está dentro de seu íntimo; em cena.

- duplamente plateia – assiste as reações da própria plateia; assiste a si mesmo.

- (uma quarta: qualquer pessoa que, antes do espetáculo, se depare com um monge pela rua).

Buscando um equilíbrio entre a comunicação intelectual e visual, o espetáculo chega por vezes ao onírico: elementos cênicos ampliando a noção espacial; as diferenças de ritmos e climas; a sonorização vocal e acústica, sempre ao vivo; atores pintados de azul, vermelho, branco e argila (o barro, assim como o fogo, a água e ar estarão sempre presentes).

O espectador experimenta compreensões que caminham pelo racional, pelo visual e até pelo olfativo (a casa de chás das bruxas), pelo tátil (as diferenças texturas cênicas); e pela sensação de “estar” dentro do drama. O que chega via emoção se dá, principalmente, na cena de resolução mais simples. Há grades que separam os dois atores e o público, mas é quando se acham mais próximos – coração a coração. Uma cela dentro da semi-destruída biblioteca. Mephisto adormecera os guardas e vigia. Fausto desce por um alçapão para salvar Margarida, enlouquecida pelos crimes cometidos por amor a ele. O tempo urge. O dia ameaça despertar. Fausto solta as correntes que prendem Margarida, mas não consegue convencê-la a fugir: somente presa mantém esperança de viver; ainda que louca. É a grande perda, o grande pesar de Fausto.

No segundo ciclo, a cada novo avanço, tudo que Fausto conquista não é o que ele quer. Até que por fim – e a cena é conduzida para fora, para o ar livre – morre Fausto, rodeado espontaneamente pelo público. E é enterrado – de verdade! – por duendes, no pátio do teatro. Uma chuva de pétalas expulsa os coveiros (a morte) de Fausto. Então ele é conduzido para o ar, para o alto, para o “eterno feminino”.

E nós, mortais espectadores, ficamos cá embaixo, na Terra , na terra da Terreira, embalados pelo texto final:

“O sol bebe a lua e o infinito bebe o sol”.

O público sai comentando: “isso é arte, de verdade!”, “muito diferente daquilo que se costuma ver em teatro”.

*RAFAEL BAIÃO é Diretor e Ator

(Publicado em A Crítica , 1994)