Marco
Weissheimer
(Trinta dias de cultura – jan.fev.mar. 1991)
Qual a
origem, a essência do teatro? Herdeiros de Antonin Artaud, na busca
de um teatro que recupere sua identidade original – o contato
humano concreto – os atuadores do Ói Nóis Aqui Traveiz foram
buscar na Antiga Grécia, a Tragédia de Antígona, de Sófocles, uma
defesa da desobediência civil do indivíduo contra a opressão do
Estado, do Poder. São quase três horas de espetáculo, de contato
contínuo dos atores com o público (podem entrar 50 pessoas no
máximo em cada sessão), onde, em certos momentos, o texto adquire
uma posição secundária. Os alvos são as sensações do público.
É a busca de um teatro participativo que uma coração e mente na
vivência de um drama humano.
Antígona
Ritos de Paixão e Morte
arranca o público de sua cômoda posição de espectador. Para
assistir à peça é preciso usar coração, cérebro e as pernas. O
contato com os atores é direto. Olho no olho, pele na pele. Envolve
todos os sentidos com cheiro, sons, cores e movimentos. Na relação
entre atores e público, a fragmentação humana fica evidente. O
medo do olhar e do toque humano. O desequilíbrio racional e emotivo,
hoje dominante, reflete-se na maneira como as pessoas estão vivendo
e na forma como assistem a uma peça apresentada de quintas a
domingos, às 21 horas, na Terreira da Tribo (rua José do
Patrocínio), em Porto Alegre.

O cenário
é um deserto e a cidade é a antiga Tebas. O chão está
coberto de areia, há uma ponte de corda e madeira, um lago, uma
ossada. No enredo original de Sófocles, Antígona (Beatriz Britto)
entra em conflito com o rei Creonte (Paulo Flores), por querer
enterrar seu irmão Polinice, morto em batalha contra os soldados de
Tebas. Creonte julga Polinice um traidor e ordena que seus restos
apodreçam sob o sol. Entram em conflito o indivíduo e o poder. Mas,
do texto original, pouco foi preservado. Ao texto de Sófocles,
somam-se leituras de Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Jean Paul Sartre,
Albert Camus, Antonin Artaud, Anais Nin, entre outros.

Segundo a
atuadora Beatriz Britto, um teatro de comunhão pede a criação de
um novo espaço, que envolva ator e espectador, fim da divisão entre
palco e platéia. É a defesa do contato físico, direto com o
público, que o faça sair da condição passiva à que foi
acostumado. A versão do Ói Nóis para Antígona envolve textos de
ruptura com a postura conservadora e alienante de vida.
Foram
misturadas reflexões materialistas e existencialistas junto ao
original de Sófocles. O resultado é estimulante. O principal
inimigo da liberdade individual não é o Estado, o Poder,
mas a omissão do homem frente a situações de conflito. O obstáculo
para uma vida harmônica e prazerosa é o embrutecimento dos sentidos
e da razão, a fragmentação de corpo e cérebro. Ói Nóis Aqui
Traveiz tenta juntar esses cacos e dotá-los de um sentido. Procura
demolir a fronteira entre as pessoas, que já não se permitem o
toque, o olhar. Viver vale a pena, desde que seja para conquistar a
liberdade através dos próprios atos.
A origem
do Teatro é a comunhão das pessoas, o encontro humano, momento
de êxtase e sensação. O Teatro é talvez a última chance do
homem ser aquilo que deve ser, um ser integral e integrado com seus
semelhantes, não através do embrutecimento, mas da sensibilidade
criadora. “Ser tocado! Acaso sabem o que é ser tocado por um ser
humano?” – perguntou certa vez Anais Nin. Assistindo Antígona, a
resposta é de uma clareza incontestável: o toque de outra pessoa é
algo estranho, ameaçador; a sensibilidade foi embrutecida por uma
vida vazia de significados reais. Para Paulo Flores, um dos
fundadores da Tribo, nesse final de milênio, o Teatro permanece como
o único lugar reservado a resgatar a autenticidade humana inicial;
desalienar o homem moderno, restituí-lo à sua verdade carnal e
original.
O projeto
pesquisa Raízes do Teatro não se encerra com Antígona. O grupo
pretende evoluir para vivências teatrais, que não tenham
preocupação com o produto final. “Que seja a própria cultura em
processo, onde as pessoas se entreguem a uma experiência de vida.
Que abra um espaço para o exercício de sensibilização do corpo e
da imaginação através da convivência, sem temas e roteiros
definidos e sem qualquer preocupação com a encenação final”,
escreveu Paulo Flores. “Queremos descobrir as grandes paixões
essenciais ocultas pelo homem falsamente civilizado”, diz ele.
Após a
apresentação de Antígona atores e público conversam numa sala
sobre o que sentiram. O objetivo da peça é sacudir as pessoas,
fazê-las pensar sobre suas trajetórias. A vida só tem sentido
enquanto desafio de construção. Ligar os fragmentos e dotá-los de
um sentido, dar uma história a nossas vidas. Vive-se hoje num mundo
repleto de informações. A rede de comunicação fecha-se sobre o
mundo exterior e estamos presos a ela, sem entender muita coisa. Os
fatos se sucedem e vivemos versões e repercussões. Poucos conseguem
gerar e vivenciar atitudes históricas. Não, assistir às novelas
globais não é uma atitude histórica. Ainda mais quando este ato
repete-se diariamente. Os cães coçam suas pulgas todos os dias.
Nossos dias precisam de gestos únicos, que revelem individualidades
cheias de vida, com desejo de expansão. Isso é transcender o
círculo da rotina. Isso é vier.

Penso na
relação entre a história da humanidade e nossas histórias
individuais. Que pessoa é capaz de reconstituir sua trajetória
pessoal, a evolução de seu pensamento (quando há), as mudanças de
posição, de comportamento. Restam apenas fragmentos, pedaços de
memórias empoeiradas. Na esmagadora maioria dos casos, as pessoas
vivem construindo coisas incompletas, fabricando ruínas, destroços.
A consciência tenta construir um sentido para a sucessão de eventos
que marcam uma existência. Perde-se em labirintos. A vida acaba
resumindo-se em sensações repetidas à exaustão. Mesmice
existencial é uma marca da espécie.
Prolifera
um estado de absoluto desprezo pelo momento presente, caracterizado
pela repetição de gestos já vividos, padrões estabelecidos
projeção de dias melhores que jamais virão. O momento é aqui e
agora. A frase é velha, mas difícil de viver. O pacto com a
mediocridade escraviza.
O francês
Antonin Artaud, que morreu desprezado pela espécie, abandonado num
quarto de hotel, deixou um pedido para todos nós: “abandonem as
cavernas do ser. Venham, o espírito respira para fora do espírito.
É tempo de deixarem suas moradas. Cedam ao Todo-Pensamento. O
maravilhoso está na raiz do espírito”.