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Faca e gesto consequentes

 Antônio Hohlfeldt (Diário do Sul, 22 de dezembro de 1986)

Fotos de Isabella Lacerda

   Beckett é conhecido por seu niilismo e sua descrença em qualquer valor que ultrapasse a humanidade. Mais do que isso, o grande escritor irlandês desacredita na própria criatura humana, que visualiza como um ser sem caminho e sem lógica, sobrevivendo sem qualquer objetivo na vida, ou, quando os tem, sendo enganado por um falso objetivo (como em “Esperando Godot”, já que o tal Godot, em última análise, jamais virá porque jamais pensou em vir).


 

   No caso de “Fim de Partida”, pode-se dividir a situação dramática em duas abordagens. A mais imediata é exatamente aquela que, em nível de realidade, pode ser desprendida das alusões, nem tão escassas assim, que pontuam todo o texto, talvez um dos primeiros trabalhos literários a abordarem a traumatizante experiência da bomba nuclear dos Estados Unidos em 1945. Pode-se pressupor que há muito aqueles quatro sobrevivem em uma construção quase subterrânea, que os salvou da morte certa em uma explosão nuclear. Contando com alguns mantimentos, vêm sobrevivendo, ainda que a escassez se acentue. Parcos – quase nenhum, são os sinais de vida remanescentes: uma pulga, um rato e eles mesmos. Odiando-se, perdem o sentido das horas, mas teimam em mantê-las no relógio, que, afinal, funciona, como uma espécie de “enganador do tempo” marcando, na verdade, pela hora de tomar remédios, contar uma (sempre a mesma) história, comer qualquer coisa, levantar, deitar, etc. Enquanto isso, o criado anda de uma janela para outra, a tentar descobrir qualquer sinal de vida, o que parece ocorrer no final, quando ele se prepara para sair, mas então, se vê, definitivamente, preso ao grupo, pois, enfim, também perdeu a articulação de suas pernas e do próprio corpo, condenado que está àquela eterna companhia, após a morte dos dois velhos.


O outro nível de análise se dá  em nível filosófico, retomando as antigas preocupações de Beckett. A situação pode ser vista, assim, como uma imagem da própria vida, à qual estamos condenados, sem saída, vivendo esterilmente em relação a nossos semelhantes, negando-nos a nossa própria humanidade, distanciando-nos permanentemente de qualquer possibilidade de uma comunicação mais efetiva com nosso semelhante. Neste mundo, não há qualquer crença numa vida posterior: ali é ruim, lá fora, ainda pior (isto é, após a morte). Neste sentido, a peça coloca-se como um círculo fechado sobre si mesma, o que o cenário bem traduz, ao introduzir o espectador por um corredor circular, feito em zinco até o quente círculo coberto por plástico negro, onde se dá a encenação.

   O realismo da cenarização de Isabela Lacerda, combinado com o aplique de grossas camadas de maquiagem que, com o calor despregam da pele dos atores, e mais os figurinos criam um clima de opressão, de apodrecimento e decomposição impressionantes. O contraponto criado, ao início e final da peça, com a trilha sonora, deixando, contudo, todo o tempo central da encenação entregue exclusivamente ao diálogo dos personagens, ratifica esta impressão: é como se as palavras fossem facas a esgravatarem as entranhas de cada um. A dramaticidade, radicalizada mantém-se, contudo, sob permanente controle, graças a uma interpretação que, ao contrário, é quase neutra, com um controle total dos intérpretes em gestos lentos, que se desfazem à medida mesmo em que ocorrem, como se fosse impossível repeti-los alguns segundos depois.

   Apesar do calor e da inoportunidade desta temporada, nesta altura do ano, a encenação de “Fim de Partida” pelo grupo “Ói nóis aqui” coloca-se, contudo, sem sombra de dúvidas, dentre os mais importantes espetáculos produzidos entre nós nesta temporada, e revela-nos um grupo bem mais consequente do que se poderia esperar, a partir de seus espetáculos anteriores.


Numa temporada que se caracterizou pela boa qualidade da maioria dos espetáculos apresentados, o grupo “Ói nóis aqui” uma vez mais se destaca, desafiando o público e propondo, inesperadamente, um trabalho de grande profundidade, e que, inevitavelmente, marcará nosso teatro, mesmo que a escassez de público para espetáculos desse gênero seja também evidente.