Claudio
Heemann (Zero
Hora, 2 de setembro de 1987)
O Grupo
Ói Nóis Aqui Traveiz assumiu outra atitude pioneira entre nós.
Desta vez como cultor de repertório. Apresenta em seu espaço na
Terreira da Tribo, em dias alternados, suas três últimas produções.
São elas “A Exceção e a Regra” de Bertolt Brecht, uma
experiência de teatro de sombras intitulada “Manchas no Lençol”
e “Ostal” de Aldo Rostagno, ritual cênico típico do estilo que
tem distinguido a atuação do conjunto de Paulo Flores. Como sempre,
o repúdio aos valores dominantes e ao palco tradicional, com o
pensamento na transformação da sociedade, caracterizam a atuação
do grupo. A encenação de celebrações contestatórias que é a
forma de expressão mais característica do radicalismo do Ói Nóis
Aqui Traveiz tem sido acompanhada nas últimas temporadas pela
utilização de obras de autores consagrados. Depois de “As
Domésticas”, de Jean Genet, houve, de Samuel Beckett, “Fim de
Partida”. Agora chegou a vez de Bertolt Brecht, antecipando Adamov
que será o próximo dramaturgo no repertório do conjunto.

“A
Exceção e a Regra’ é uma das conhecidas pequenas peças
didáticas que Brecht compôs de maneira silogística, fazendo
crítica ao capitalismo. A obra possui o tom sarcástico
característico de Brecht e analisa com dialética penetrante a
relação oprimido-opressor. Em contraponto à sobriedade matemática
do texto, “A Exceção e a Regra” do Ói Nóis Aqui Traveiz
colocou vigor juvenil numa visão tropicalista da conhecida obra. A
clareza racional do texto encontrou na montagem um traçado
caricatural. Este tratamento não esconde uma inspiração
expressionista. Os personagens centrais aparecem de modo grotesco com
máscaras semelhantes às da comédia dell’arte. O juiz é feito
por dois atores dentro de uma só roupa, ficando gigantesco. Há um
coro que dá ênfase ginástica à movimentação. Os figurantes
cumprem determinadas vezes a função de cenário vivo. Com toda a
vibração e o ritmo do samba, a música é popular e bem brasileira.

Assim, a
vitalidade da performance se processa com certo ímpeto carnavalesco.
Devido ao dinamismo com que as canções são interpretadas e o eco
do tambor no recinto da apresentação (há um conjunto musical
em cena) algumas letras essenciais, notadamente no prólogo, não
ficam muito claras. Mas quando Zé da Terreira e um trio feminino
cantam sozinhos, o problema desaparece. No mais, personagens e
situações bem definidos, a lição desejada pelo texto passa com
facilidade para a platéia. “A Exceção e a Regra” discorre
sobre a injustiça da justiça comprometida com o poder oligárquico
e a lógica da opressão. Essa justiça não aceita a bondade como
possível nas circunstâncias habituais de relacionamento entre
empregado e patrão. A regra é a luta entre as classes; a exceção
é o gesto cordial entre representantes de camadas sociais
diferentes. Por isso, o comerciante da peça mata o carregador
supondo que ele só poderia querer agredi-lo quando se aproxima para
um gesto amigo.
Sombras
Com os
jovens das oficinas de Experimentação e Pesquisa Cênica da
Terreira da Tribo, o segundo dos três espetáculos do Ói Nóis Aqui
Traveiz em cartaz é mais um exercício técnico do que qualquer
outra coisa. Chama-se matreiramente “Manchas no Lençol”. Mas
trata-se apenas de algumas experiências com o teatro de sombras.
Atores e objetos cenográficos são iluminados por trás, lançando
silhuetas bem delineadas sobre uma tela. Na frente dela, o público
recebe as imagens e movimentos com o fascínio de quem assiste a um
antepassado da animação cinematográfica. Pequenos truques, efeitos
sonoros, luz colorida, humor e a linguagem visual do teatro de
sombras conquistam logo a platéia com o apelo pantomímico e
fascínio ilusionista. Em cinco cenas breves, “Manchas no lençol”,
posiciona-se como exercício e divertimento. Comprova a inquietação
do Ói Nóis Aqui Traveiz diante das possibilidades de linguagem
cênica. As exigências de habilidade artesanal do teatro de sombras
foram bem atendidas. Sugerem até que o teatro de sombras do “Ói
Nóis” poderia aprofundar o uso desta técnica numa realização de
grande fôlego. A força das imagens obtidas com as sombras oferece
um campo fértil para invenção e fantasia.
Mergulho
psíquico
Porém,
é com “Ostal” que o Ói Nóis Aqui Traveiz se propõe mexer
mais fundo com a platéia. Apenas vinte pessoas podem assistir a cada
representação da peça. Os espectadores são introduzidos na área
cênica (ótima decor de Isabella Lacerda) por um médico em traje
cirúrgico. Convidado a usar máscaras de sala de operação, o
espectador é levado ao quarto de uma paciente. Em volta da cama da
doente, estabelece-se o contato com o mundo de uma esquizofrênica.
Acessos, alucinações, sofrimento, são delineados numa tensa e
claustrofóbica visita à realidade dos conflitos psíquicos. Nenhuma
palavra é pronunciada durante a representação. Simplesmente os
espectadores entram na intimidade de uma situação extrema.
“Ostal”
foi criado pelo grupo italiano CFR (abreviação de confrontação)
sob a direção de Aldo Rostagno. O termo “Ostal” é uma palavra
do francês arcaico e significa lar-templo. A obra quer retratar o
processo esquizofrênico de um indivíduo e denunciar,
simbolicamente, a violência do processo de estruturação da
personalidade que pode acontecer com a destruição da parte mais
sensível das pessoas. Poderia usar como epígrafe aqueles versos de
Mário Quintana: “Da primeira em que me assassinaram, perdi o jeito
de sorrir que eu tinha”. Interessa ao “Ói Nóis Aqui Traveiz”
colocar que a destruição mental de um indivíduo é obra de uma
sociedade cruel e condicionamentos desumanos. A encenação de
“Ostal”, com sua ambientação forte e clima denso, consegue ser
bastante contundente ao colocar o espectador dentro de um quadro vivo
que oscila entre a insanidade, o sonho e a ameaça. Aliás, alguns
espectadores não suportam a atmosfera da peça e se retiram durante
a representação. Arlete Cunha, no papel da doente, domina com muita
interioridade o sentido ritual da representação, muito bem
secundada por Maria Rosa, Sérgio Etchichurry, Renan Costa e os
efeitos luminosos e sonoros. A cenografia com seu túnel misterioso,
a casa imensa, os alçapões-surpresa, a mesa de jantar depredada, é
extremamente eficiente em criar um espaço cênico apropriado. Dá ao
público um tratamento de choque conscientizador.