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Claudio Heemann ( Zero Hora, 08 de março de 1986)
Fotos de Roberto Silva
O Grupo Ói Nóis Aqui Traveiz está apresentando sua versão “As Criadas” de Jean Genet, sob o título de “As Domésticas”, segundo uma adaptação de Paulo Flores. O Ói Nóis Aqui Traveiz ganhou notoriedade pelo inconformismo e contestação com que tem orientado seus espetáculos. Há oito anos faz teatro agressivo e antiburguês, muitas vezes indo para a rua interferir na realidade ou envolvendo fisicamente o espectador com encenações rirualísticas. A linguagem cênica do Ói Nóis Aqui Traveiz tem se caracterizado pela sugestão plástica, a ação física, com minimização do texto e da palavra. Por isso é um tanto surpreendente que o grupo tenha escolhido Genet e respeitado a densidade literária do autor de “Note Dame de Fleurs”. Mas é claro que o aspecto ritual satânico da peça, e a temática das relações entre dominador e oprimido, se identificam com a postura do conjunto orientado por Paulo Flores.
O grupo faz uma leitura fiel ao jogo de aparências manobrada por Genet. Aparece bem a intricada troca de papéis e escamoteamento de personalidade que envolve não só as personagens mas os atores travestidos segundo a ótica sexual do autor. Estamos diante de um jogo sufocante de perversões, fechado em si mesmo. Verdade e mentira, aparência e realidade, submissão e revolta, aspiração e ilusão formam um pesadelo esquizofrênico. As forças em comando são maldade e frustração, vingança e degenerescência, servilismo e traição, amor e ódio, impotência e desejo. O efeito é de um universo infernal. As relações de identidade das figuras mudam a cada instante. Uns fingindo ser os outros, querendo e repudiando os outros numa interminável girândola sadomasoquista. As criadas da peça querem ser a patroa. Vestem a roupa da dona da casa. Imitam seus gestos. Representam as atitudes da senhora enquanto ela está ausente. Tudo isso é adoração ambivalente desmascarada quando fica descoberto que levaram, com cartas anônimas, o amante da patroa à cadeia. E estão planejando o assassinato da dona da casa.
Na terrível mascarada que é a peça, a bondade da patroa é inútil, já que ela ocupa uma posição de privilégio. O que realmente existe de básico é o ódio das criadas e o horror do mundo. As empregadas gostariam de assumir o papel que a patroa desempenha na sociedade. Não sendo isso possível, resolvem eliminá-la. Tão intenso é o esquema de destruição que desencadeiam, que chegam, fantasiadas de patroa, a um clímax de autodestruição. O recado maior da peça é que seu autor, na vida real, presidiário e homossexual, estigmatizado e repelido pela sociedade, quer destruí-la. É a revolta e a vingança da marginalização. Daí o quadro do mundo travestido e louco, entregue a sonhos desesperados e que termina em nada. A peça de Genet é um ritual de maldade, desesperança e negação. Com ele, Genet assina uma condenação de morte para uma sociedade cruel e doente.
Como observou Sartre em sua análise de “Lês Bonés” o bem á apenas uma ilusão. O mal é o nada que se eleva sobre as ruínas do bem. O espetáculo do Ói Nóis Aqui Traveiz transmite essa sensação de clareza. A visão é de crítica a um universo corrompido e condenado. Os cenários e os figurinos de Isabella Lacerda são expressivos em criar atmosfera e enfatizar o problema sexual latente. Dos intérpretes, Paulo Flores (a patroa) é quem aparece com mais inteligibilidade. As domésticas vividas por João Horácio Borges (Solange) e Renan Costa (Clara) compensam com energia, ritmo e senso de grotesco o que lhes falta em dicção e maturidade interpretativa.
Mais uma vez o Ói Nóis Aqui Traveiz celebra uma missa negra com a devida convicção litúrgica. Consegue materializar em seu espaço cênico anticonvencional um clima de inquietação.
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