- Gerar link
- Outros aplicativos
- Gerar link
- Outros aplicativos
Carta de Henrique Saidel
Fotos de Eugênio Barboza, Lucas Gheller e Pedro Isaias Lucas
Porto Alegre, inverno de 2020
Querido Meyerhold,
Escrevo esta carta como quem escreve algo de muito importante, como quem escreve algo que lhe causa um tanto de medo e hesitação, como alguém que deseja escrever coisas bonitas, coisas inesquecíveis, inteligentes, coisas revolucionárias, coisas que estejam à altura da tua arte, do teu teatro, da tua vida. Escrevo esta carta depois de ter escrito “Querido Meyerhold”, ali no topo da página, há vários dias e depois de ter ficado vários dias sem escrever mais nada, apenas olhando a página em branco e pensando em todas as coisas bonitas, inesquecíveis, inteligentes e revolucionárias que eu poderia dizer para você e a teu respeito. Escrevo esta carta mais de um ano depois de ter visto (duas vezes) a peça que o Ói Nóis Aqui Traveiz fez com você no título e como personagem, e mais de dezenove ou vinte anos depois de te ler pela primeira vez, de saber de você e do teu teatro pela primeira vez, de ser provocado e convocado pelo teu teatro a experimentá-lo (mesmo que timidamente) também no meu teatro. Eu lá com meus dezenove ou vinte anos, prestes a tentar meu segundo vestibular para artes cênicas. É verdade, querido Meyerhold, nossa relação já é antiga. Da Rússia ao Brasil, de Moscou à Curitiba, Porto Alegre e tantos outros lugares. E foi essa relação, que perpassou praticamente metade da minha vida, que aflorou com todo seu perfume e excitação quando entrei naquele espaço tão interessante e importante da Terreira da Tribo, quando eu te vi ali naquele palco, com aquele cenário (aquele cenário!), ecoando aquela voz, dilatando aquela presença criadora diante e com aqueles espectadores.
Escrevo esta carta esperando que ela te chegue como uma carícia. Não como as cartas-carícias que o teu querido Anton te enviava enquanto você estava preso, e que você evocou tão comoventemente na peça do Ói Nóis: não tenho nenhuma pretensão de te acariciar tão bem quanto Tchekov (imagina!), nem de longe. Mas te envio esta carícia-carta na tentativa de retribuir minimamente que seja as carícias-livros, as carícias-manifestos, as carícias-teatros que você me/nos fez, mesmo depois de mais de sessenta anos do teu fuzilamento. Uma carícia pode ser um afago, uma lembrança, um recado, um elogio, um “não se preocupe, eu estou contigo”, um sussurro, um toque delicado, um gesto de conforto e acolhimento. Uma carícia também pode ser um empurrão, um chacoalhão, uma chamada de atenção e à ação, uma provocação, um “ei, acorda, é para lá”, um estímulo, um gesto de cumplicidade e incentivo. Uma carícia é, antes de tudo, um gesto – mãos, corpo, palavras, intenções, ações – em direção ao outro, com o outro. Um gesto de empatia, de amor, um gesto de humanidade (e para além dela). Por isso, acho curioso quando você, ao receber as cartas de Anton, se preocupa em frisar que não tem pudor em receber aquelas cartas, aquelas carícias de outro homem, e afirma que às vezes “um homem necessita da carícia de outro homem”, como se fosse necessário justificar (para si, para ele e para o público) o amor e a cumplicidade mútuas entre dois homens, como se fosse necessário lembra(-se) que não há problema ou perigo quando dois homens se relacionam verdadeiramente na amizade e não apenas sob os protocolos esterilizadores da heteronormatividade, como se fosse necessário criar um espaço seguro – mesmo que através de palavras escritas em um papel ou pronunciadas em um palco – para o afeto, para a humanidade. Talvez isso tudo seja mesmo necessário, ainda. Mas que bom seria se não precisássemos mais de todos esses cuidados e receios, e pudéssemos apenas trocar e espalhar carícias, sem maiores ressalvas. Como você e Anton, como você e Zinaida, como o que eu tento fazer nessa breve missiva.
(Então me dou conta de que, quando eu escrevi “você”, no parágrafo anterior, eu poderia estar me referindo tanto ao Meyerhold da história, ao encenador russo Vsevolod Emilevitch Meyerhold, como também ao personagem dramático criado pelo dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky, ou mesmo à persona encenada e materializada pelo ator brasileiro Paulo Flores. Ou a todos ao mesmo tempo. No teatro, assim como na vida, “você” – assim como “eu” – nunca é apenas uma só pessoa, nunca é apenas uma só camada, uma só identidade inequívoca e separável do seu contexto e dos seus atravessamentos. Os pronomes dificilmente dão conta da realidade, tampouco da ficção. Aqui, aceito e grafo “você”, com todas suas deliciosas contradições e imprecisões.)
Foi lendo alguns dos teus textos – e textos sobre você, e também de/sobre o alemão B. Brecht – que eu percebi/lembrei o que poderia ser óbvio: que o teatro não precisa necessariamente fingir que não é teatro (fingindo ser a realidade cotidiana), que o teatro não precisa fingir/simular e investir na ilusão realista de que é outra coisa além dele mesmo, enquanto arte, artifício, construção estética fruto de um trabalho e um engajamento coletivo que envolve ativa e criativamente todos os artistas e também todos os espectadores de uma obra. Um teatro que se assume e se mostra como teatro, expondo e redimensionando suas próprias convenções. Perceber e lembrar disso foi um momento (que se estende até hoje) de epifania artística e política, revelando as possibilidades (auto)críticas e revolucionárias de uma arte tão concreta e conectada ao seu tempo quanto o teatro. Um teatro revolucionário, nascido com e para a revolução (a soviética, no teu caso, mas não só ela), cujo papel é investigar e propor uma estética e uma vida revolucionárias em si mesmas.
Você fala com paixão sobre a improvisação dos atores e, com ainda mais paixão, sobre a imaginação criadora da arte como arma da revolução. Ah, a paixão! É ela que nos mobiliza e nos move, é ela que nos excita e incita, fazendo de nossos corpos e ideias e palavras e espetáculos agentes de transformação. Como não se apaixonar pela revolução? E como não desejar e agir apaixonadamente para que a revolução continue a revolucionar não só o mundo, o outro, mas também a si mesma? Artistas que somos, sabemos na pele e nos poros que a imaginação criadora, que o processo imaginativo é a força que tudo transforma, que tudo revoluciona, máquina de guerra contra a imobilidade conservadora das forças estéticas e políticas a serem combatidas. Da mesma forma que, décadas depois, um certo rapaz latino-americano nos ensinou com sua música que a felicidade é uma arma quente, a imaginação criadora – amparada pela liberdade comprometida da improvisação e insuflada pela paixão pela revolução – também é uma arma potente de existência e ação na arte e no mundo. Meyerhold e Belchior, cada um com suas armas, cada um com sua paixão e seu comprometimento ético contra uma vida estagnada e opressora.
E, como você mesmo disse, talvez tenha sido justamente essa tua paixão pela revolução enquanto processo permanente de crítica e transformação, essa convicção de que a revolução também tem que revolucionar a si mesma, essa insistência de que a revolução deve ser também estética e inventar novos procedimentos, novas relações de trabalho de criação (entendendo que sim, o trabalho artístico também é um trabalho e, como tal, deve ser revolucionado), novos formatos e novas conexões com o público, talvez tenha sido tudo isso que te fez ser visto como um perigo para o regime de poder e governo que lutava por se estabelecer. Afinal, nada mais perigoso para um regime identitário e autoritário do que a possível liberdade fluída e indomável – e convidativa – da criação artística que se pretende crítica e arredia aos padrões pré-estabelecidos de forma e conteúdo. A disputa pelo imaginário das pessoas e de uma nação, a disputa pelas formas estéticas que devem ou não existir, a disputa pelas histórias/narrativas que devem ser contadas e como devem ser contadas, é uma disputa de poder, uma disputa política em seu estado paradoxalmente mais subterrâneo e mais espetacular e, por isso mesmo, mais intransigente. Nessa batalha, o triste é perceber – e somos levados a perceber isso todos os dias – que a força e a quentura das nossas armas, da nossa felicidade e da nossa imaginação criadora, muitas vezes não são suficientes para evitar que sejamos impedidos e mesmo mortos pelas armas (armas de fogo e outras armas objetivas de destruição de vidas) dos nossos inimigos auto-declarados. E assim somos torturados. E assim somos silenciados. E assim morremos.
Mas nós não morremos. Nós não nos silenciamos. Nós sobrevivemos
e continuamos em nossa arte, em nossas obras e em nossos encontros.
Nós resistimos em nossas cenas, em nossos processos criativos, nos
espaços que construímos e mantemos, em nossos compartilhamentos com
o público (mesmo que sejam poucas pessoas de cada vez). Nós vivemos
e nos perpetuamos uns nos outros, e para além dos outros, nos corpos
e ideias que vibram e se conectam. Você e Zinaida, em sua paixão um
pelo outro e pelo teatro, foram cruelmente assassinados pelos agentes
da mesma revolução que tanto defendiam. Mas Meyerhold e Zinaida não
estão mortos: eles estão ali, diante daquelas pessoas, naquela
Terreira, proferindo aquelas palavras escritas por Pavlovsky,
mobilizando aqueles corpos – os corpos e as subjetividades de Paulo
e Keter –, acionando aquele cenário, encenando aquele espetáculo,
encontrando aqueles espectadores e, por uma feliz coincidência,
fazendo em mim aquelas carícias.
Imerso nessa atualidade caótica, volto-me para o ano passado, para aquela noite em que cheguei na Terreira da Tribo para te ver. Na primeira vez, eu estava sozinho; na segunda vez, fui com minha amiga Caroline Marim, que também está te enviando uma carta aqui. Peguei meu ingresso e comprei uma cerveja na bilheteria: você sabe, sempre que possível, gosto de amaciar os sentidos antes de entrar no teatro. As portas se abriram e entrei no espaço escuro. Uma voz masculina ecoava pelo espaço, um canto cerimonial e um tanto melancólico recepcionando o público, acompanhado pelo ressoar ritmado de uma espécie de tambor, percutido por uma figura feminina (estaria ela vestida com trajes tradicionais russos?). É a mulher, que se coloca como “a voz das massas”, que inicia o espetáculo, que nos chama para acompanhar os pensamentos póstumos do homem que ousou ser a revolução. É a mulher que surge musical em diversos momentos da peça, pontuando a narrativa e as transformações do homem que conta e defende com orgulho e lucidez a sua própria história, para si mesmo, para seus amigos e camaradas, para sua companheira, para seu público.
Em alguns momentos, fico pensando se o espetáculo não deveria se chamar Meyerhold e Zinaida, ambos apaixonados e mortos pelos mesmos motivos, ambos donos de suas histórias entrelaçadas pela mesma revolução e pela mesma arte. A voz e a presença da mulher estão ali postas, mas seu papel coadjuvante não me deixa parar de pensar que a história do teatro e da humanidade – a nossa história – ainda precisa visibilizar mais, imortalizar mais e repercutir mais as suas vozes femininas (e também as não-binárias e todas as outras), para além de seu costumeiro lugar de musa inspiradora e/ou assistente dedicada. Qual é o papel da historiografia, da dramaturgia, da encenação, da produção, da crítica e de todo trabalho cultural nessas outras revoluções igualmente necessárias? Qual é o nosso papel, agora, nisso tudo?
Keter Velho está ali – com todo o aparato técnico e sensível que só o trabalho continuado de um grupo tão longevo quanto o Ói Nóis pode proporcionar – dando suporte para que Paulo Flores possa enfrentar com decisão e entrega o desafio de um longo monólogo, ou de um semi-monólogo, onde ficam mais que evidentes suas habilidades e sua força cênicas, suas nuances energéticas e semânticas, alternando entre momentos de agitação e de delicadeza. E como é bonito e importante ver em cena aquele homem com mais tempo de carreira do que eu tenho de idade, aquele homem que traz consigo e compartilha silenciosamente com seu público boa parte da história do teatro e da resistência política brasileira, inscritas em sua pele transpirante, em suas mãos espalmadas, em seus gestos amplos, em seus cabelos brancos e revoltos, em suas expressões faciais abundantes, em sua voz modulada e volumosa, em sua movimentação calculada, em seu corpo disponível e pronto para a ação. Uma atuação grandiloquente, forjada em décadas de espetáculos de rua e/ou de grandes espaços, contracenando com elencos numerosos e também grandiloquentes, acostumada a dirigir-se a uma audiência às vezes fisicamente distante e/ou espacialmente dispersa. Uma atuação ancorada em uma convicção artística e política de teatro, perceptível em todos os trabalhos daquela Tribo de Atuadores. Paulo faz Meyerhold surgir em uma atuação estilizada e não realista, sintonizada com a interpretação de Keter. Meyerhold e Zinaida em uma atuação meyerholdiana? Já teria valido a pena sair de casa e ir à Terreira só para ver aquele elenco.
Mas, ao entrar no espaço da peça e sentar-me naquela arquibancada fixada em relação frontal com o palco, não apenas os atores me chamam a atenção. É impossível não vê-lo ali, imponente, enigmático, tomando quase todo o espaço disponível: o cenário, o magnífico cenário, adaptação daquele criado por Liubóv Popóva para a montagem de O corno magnífico, dirigida por você em 1922. Ícone do construtivismo russo, aquele dispositivo cênico ressurge quase cem anos depois, e paira solene e sorridente diante de mim, esfinge concreta que desafia: aciona-me ou te devoro. E os acionamentos são múltiplos e simultâneos – os atores acionam o cenário, o cenário aciona os atores, o dispositivo aciona a si mesmo, numa espiral de afetações mútuas que evidencia o caráter interligado e mecânico (biomecânico) de todos os elementos da cena. A encenação seria, então, uma grande máquina, onde todos os elementos, todas as engrenagens atuariam interdependentemente, em uma objetividade comum (comunista), evidenciada naquela visualidade concreta e propositiva, naquele dispositivo e naquele espaço não-realistas. Um teatro revolucionário começa por um espaço revolucionário. E não posso negar, querida Liubóv, que estar a poucos metros de uma quase-reprodução em tamanho natural do teu dispositivo, do teu cenário que tanto estudei em minha formação como artista, e que tanto me maravilhou desde a primeira vez que o vi em uma fotografia impressa em preto e branco, em uma aula de cenografia quase vinte anos atrás, tudo isso me deixou bastante emocionado. Eu sei, é piegas, mas meu coração palpitou mais forte quando vi toda aquela tridimensionalidade dinâmica de madeira, cores e ferragens, e fiquei ansioso para ver como o dispositivo funcionaria durante a peça. Como uma criança que finalmente chega empolgada ao parque de diversão, depois de dias esperando e imaginando tudo o que poderia ali encontrar. E isso não é pouca coisa.
Mesmo que os acionamentos espaciais/corporais que pude observar não fossem os mais surpreendentes para nossos padrões de início do século XXI, ainda assim, a presença reconstituída e viva do dispositivo de Popóva foi um dos pontos altos da montagem, junto com o trabalho do elenco. Arrisco-me a dizer que o Meyerhold do Ói Nóis é uma obra importante por seus aspectos artísticos e também, por que não, históricos. Ao recolocar em foco a tua vida, tua obra e tua política (uma tríade que é, na prática, uma só coisa), explicitando os contextos pessoais, estéticos e sociais, meu caro Emilevitch, a Tribo de Atuadores criou um espetáculo iminentemente didático. E se algumas pessoas podem ter algum tipo de receio ou ressalva em relação a obras de arte didáticas, o Ói Nóis não tem. E esse não receio, essa coragem fazem parte justamente da beleza e da força que ajudam a sustentar os mais de quarenta anos de posicionamentos, criações e ações que se tornaram referência no Brasil e para além dele. A dicção pausada e muito bem articulada das palavras e das frases, o encadeamento lógico das ações e das cenas (mesmo as mais oníricas), o texto impregnado de dados históricos, o figurino que alude aos trajes construtivistas e também caracteriza os diversos personagens que surgem, a sonoplastia e a iluminação que sublinham e reforçam o discurso de cada momento da peça, o ritmo paciente e límpido da encenação como um todo, demonstram uma preocupação legítima em apresentar um espetáculo que convida e acompanha o espectador, compartilhando com ele cada uma de suas intenções e informações.Encerro esta carta dizendo mais uma vez o quão importante foi para mim esse reencontro com você e com a tua história. Com você e com esse grupo tão singular e relevante para a cultura gaúcha e brasileira – um grupo acostumado com grandes e espaçosas produções, com equipes numerosas e espaços cênicos pouco convencionais, com cenas dinâmicas e espectadores moventes, e que agora se arrisca em um espetáculo “menor”, com apenas dois atores, em um espaço fechado e em uma relação mais tradicional com os espectadores, que ficam sentados frontalmente durante toda a peça: essas escolhas me deixaram surpreso e curioso, pensando inclusive sobre os riscos que devemos correr e as soluções que podemos encontrar ao longo de nossas carreiras. Espero que essa percepção possa ser compartilhada por outras pessoas, aqui e em toda parte. Dizem que o teatro é a arte do encontro. Meyerhold vem para dizer que os reencontros também são matéria teatral. Para que o teatro, com sua imaginação criadora, continue sendo revolucionário. Meyerhold, Zinaida, Tchekov, Gógol, Stalin, os torturadores, Molotov, Popóva, Pavlovsky, Keter, Paulo, Henrique, Caroline. Muito obrigado por me convidar para este encontro, querido Emilevitch.
Daquele que te estima.
À espera de uma nova carícia tua,
Henrique
- Gerar link
- Outros aplicativos