Tu te moves de ti
Pra onde vão os
trens meu pai? Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços no mapa, e
depois o pai ria:
também pra lugar
algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te
moves de ti
Hilda Hilst,
1980
Por Valmir Santos
Fotos de Eugênio Barboza, Pedro Isaias Lucas e Lucas Gheller
Um efeito de
espelhamento poético e crítico torna-se inevitável na fruição do
estado cênico de Paulo Flores atuando como Meierhold. Espectadores
que acompanham sua trajetória junto à Tribo de Atuadores Ói Nóis
Aqui Traveis – no caso do autor deste artigo, desde A
saga de Canudos
(2000) – acessam pontes biográficas e fundos históricos e
sociopolíticos tangentes ao homem de teatro que viveu na União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, entre os séculos XIX e XX, e o
homem de teatro que vive no Brasil do século XX para o XXI.
Infelizmente, uma das constatações mais plangentes é a do arco
opressor do regime político sobre as respectivas sociedades,
guardadas as proporções, para com artistas francamente libertários
em seus fazeres e pensares.
A mão de ferro do
ditador Stálin, pseudônimo que em russo remete a “feito de aço”,
pesou sobre seus opositores, inclusive nos campos da arte e da
cultura, refratários à coerção do Estado comunista dirigido de
1927 a 1953 por Josef Vissarionovitch Djugashvíli. Já a combinação
de terra arrasada, terraplanismo, protofascismo e outras práticas
avessas aos direitos sociais no país sob o desgoverno de Jair
Messias Bolsonaro, desde janeiro de 2019, com particular desprezo e
crueldade em relação ao segmento artístico-cultural, permitem
identificar graus de afinidades autoritárias enfrentadas em
realidades distantes na linha do tempo e tão próximas no delírio
persecutório. Sabemos que o autoritarismo pode brotar sem disfarces
numa democracia, no caso brasileiro, e o totalitarismo diz respeito a
um patamar macropolítica, no caso soviético, cujo comunismo, veja a
ironia, o capitão reformado do Exército maldiz, colérico, sem
esconder, no entanto, a sanha de ter uma nação asfixiada sob seu
coturno.
Para mediar essas
fontes, Flores buscou parceria fraterna com o ator, dramaturgo,
psiquiatra e psicodramatista argentino Eduardo “Tato” Pavlovsky
(1933-2015), também ele de ascendência russa, também ele um
militante da cultura, da justiça social, da transformação do
mundo. Sua peça Variaciones
Meierhold
(2004-2005) surge como plataforma para essa triangulação da
História e, sobretudo, da cultural teatral fundamentalmente composta
de palavra e corpo, palavra e sujeito, palavra e memória.
Da perspectiva
brasileira, temos na biografia de Flores, cofundador do Ói Nóis, em
1978, o eterno retorno de trabalhar em arte sob regime de exceção,
como na ditadura civil-militar no Brasil, de 1964 a 1985, ou na
fotografia atual de recrudescimento do autoritarismo no país. A
montagem estreou na Terreira da Tribo, a sede em Porto Alegre, um mês
após as eleições presidenciais de 2018, espaço que prima pela
proximidade, mesmo na disposição frontal. E foi experienciada na
temporada do Sesc Bom Retiro, em São Paulo, no final de 2019, em
palco tradicional, à italiana, quando o estado de coisas já se
encontrava em avançada marcha a ré. Estávamos a cerca de três
meses da pandemia do novo coronavírus, mas já era flagrante a
determinação necropolítica do grupo que chegou ao poder. O
espírito do tempo, portanto, interfere sobremaneira na leitura do
espetáculo que marcou os 40 anos da Tribo, agora na casa dos 42.
Na medida que fala de
Meierhold banido, torturado e assassinado sob o jugo stanilista, essa
criação fala de Pavlovsky, cuja carreira, iniciada nos anos 1960,
atravessou três golpes militares de Estado, sendo o último deles
mais longevo, de 1976 a 1983. Ato contínuo, fala, evidentemente, de
si, Paulo Flores, naquela que talvez plasme dimensão pessoal mais
estrita em todas as encenações coletivas de seu grupo. Jamais o
faria em primeira pessoa, obviamente, dada a personalidade apurada
permanentemente a partir da alteridade.
É na contracena dele
com a atuadora Keter Velho, como a personagem Zinaida Reich, atriz e
companheira do diretor russo executada aos 45 anos, sete meses antes
dele, que o público encontra a inteireza do veterano artista da
Tribo forjado na contracultura de veio tropicalista e de inclinação
anarquista renitente. Cidadão politizado às custas dos fatos que ao
longo dos anos ameaçaram a democracia, os direitos humanos e o meio
ambiente. Artista disciplinado e autodidata nas teorias e práticas
teatrais. Eis, enfim, que dessa vez ele dá vazão indireta à
individualidade, por mais que bem acompanhado dos pares no curso da
pesquisa e construção, deixando-se abraçar ainda por Pavlovsky,
Meierhold e Zinaida.
Sendo que a presença da
mulher conota, por extensão, a de Tânia Farias, que tem seu amor ao
teatro declaradamente confundido com o respectivo sentimento que
nutre por Flores. O envolvimento afetivo é público, principalmente
na comunidade teatral, daí ser abordado aqui pela inexorabilidade
dos aspectos documental e biográfico subjacentes à narrativa
repleta de camadas. O relacionamento amoroso de 20 e poucos anos
teria encerrado seu ciclo em 2015. Causou desestabilizações
emocionais de ambas as partes, porém sem que a parceria artística
fosse esmaecida. Confira-se a química clownesca
de Tânia e Flores no elenco da criação para a rua de Caliban
- A tempestade de Augusto Boal,
de 2017. Pois a juventude radiante de Keter e sua partitura física
meierholdiana, seguida à risca, enunciam tanto a convicção
humanista de Zinaida como, indiretamente, a de Tânia, desde meados
da década de 1990 componente nevrálgica nas etapas de produção,
organização e geração coletiva na estrutura do Ói Nóis desde a
primeira hora. Para ser mais preciso, há momentos em que o registro
vocal de Keter lembra a modulação de Tânia em papeis marcantes
como os de Medeia ou Kassandra.

Ao contrário do que
costuma fazer ao adaptar um texto original em prol da polifonia de
sentidos, o nível de intervenção do grupo em Variaciones
Meierhold
é dos menores. Mantém-se preservada parte considerável do fluxo da
peça que teve pelo menos duas versões originais e outros excertos
do autor argentino em seus experimentos dramatúrgicos. O Ói Nóis
promove uma costura de textos de temáticas oceânicas na exposição
de uma série de acontecimentos sobre vidas interrompidas feito as
árvores abatidas de uma floresta, no caso, chamada teatro, essa
expressão que há séculos radiografa os poros da humanidade.
Em que pese o cunho
biográfico, trata-se de tema complexo para o público não
familiarizado com as técnicas e o treinamento de ator. Ao mesmo
tempo que, a certa altura, a biomecânica é definida como recurso
físico de treinamento para a sensibilização do corpo do atuante,
pouco tempo depois vem a demonstração prática por Zinaida. Vestida
de macacão, feito uma operária da arte, ela mostra para Meierhold
uma sequência de movimentos a fim de aperfeiçoar os estudos junto
ao idealizador desse procedimento que se tornaria bastante difundido
nas escolas de formação do planeta. Há um esforço do autor e do
grupo em contextualizar, mas ainda custa a um segmento da audiência
brasileira localizar-se nas citações a nalgumas personalidades
artísticas e políticas, o que acarreta desníveis de atenção ao
narrado. A valência para a cena não descarrilar, porém, está na
resiliência da estrutura dramaturgia essencialmente justaposta.
Pavlovsky centra na fase
final do personagem-título, entre os anos 1930 e 1940, sem fixar-se
na temporalidade. A voz de Meierhold carrega dialogismo nas citações
que faz de interlocutores, como o ator e diretor Constantin
Stanislávski, cofundador do Teatro de Arte de Moscou (1898), com
quem trabalhou por quatro anos ao lado de Evguiéni Vakhtángov e
outros, e o escritor Anton Tchékhov, dramaturgo dileto na juventude,
de quem admirava a serenidade em contraponto a seu autodeclarado
temperamento caótico. Com o adendo de que a maturidade mostrou que
havia método no caos, embora Meierhold tenha se desvencilhado da
sistematização de uma metodologia propriamente dita. O seu legado é
transmitido por meio de princípios.
Para um enredo
atravessado pela tragédia – há momentos em que a voz de Meierhold
fala de si no passado, ou seja, já executado –, o espetáculo
constitui uma celebração ao teatro e às pessoas que o fazem de
corpo e alma. São muitos os fundamentos difundidos pelo artista
russo que nadou contra a correnteza estética e político-ideológica
por cerca de 40 anos de lida como ator e, principalmente, como
encenador-pedagogo, conforme cunha a pesquisadora e diretora Maria
Thais, além de teórico do teatro. Não é demais recordar que, nos
66 anos de vida, ele e seu povo testemunharam duas revoluções, a de
1905 e a de 1917.
“É preciso desconfiar
da criação”, diz Meierhold no texto de Pavlovsky. “Castraram o
pensamento livre, a imaginação criadora.” Com assertivas como
essa, o artista que gostava de trabalhar com atores pensantes não
conhecia dificuldade em elaborar preceitos.
Uma das cenas mais
emblemáticas é aquela por meio da qual interpela seu torturador,
Vassiliev, a propósito do conteúdo de seus sonhos: se podiam ser
definidos como revolucionários ou comunistas. Cutuca-lhe o instinto
homicida, a fantasia sexual, o medo da morte, da velhice. “Meu
teatro parte de seus sonhos, Vassiliev, de seu desespero, de sua
angústia, de seu medo da loucura”, enumera. “Entende por que não
posso fazer realismo socialista [em arte]?”, completa.
Em outro momento,
Meierhold verbaliza a propósito da carta escrita a Stálin por
intermédio de um amigo a quem também explica seu intento. O
documento era uma maneira de convencer o dirigente de sua coerência
de ideias, vide a filiação ao Partido Comunista, de maneira a pôr
fim às sessões de torturas física e psicológica a que fora
submetido, além de evitar o iminente fuzilamento. Em vão.
Jamais teve respondida a
correspondência escrita a Stálin e, ao que consta na
historiografia, entregue em mãos pelo amigo Viatcheslav Molotov,
então ministro de Relações Exteriores e membro do Comitê Central
do PC – quer dizer, cúmplice desse e de outros episódios de
opressão. A peça intercala passagens históricas, reflexivas e
imaginadas, inclusive com Pavlovsky permitindo-se, em trecho não
utilizado na montagem da Tribo, vincular a condição do artista
russo à de milhares de pessoas perseguidas durante a ditadura
militar argentina, os NN
(sem nome, em latim). No país vizinho, um dos modos militares mais
perversos de agir consistia em jogar prisioneiros políticos de
aviões no momento que sobrevoavam o mar. Os chamados voos da morte
ficaram assim conhecidos porque cadáveres passaram a despontar nas
praias.

“Fui preso por um
problema estético”, afirma o protagonista. Em nenhum momento o
relato pungente dissocia a arte da vida. “O realismo socialista não
é realismo nem socialista. É um culto à mediocridade”, elucida
Meierhold. Indignação que ganha contornos mais inflamados quando,
ao final, lembra de sua participação no primeiro congresso de
diretores teatrais soviéticos, em 17 de junho de 1939, no âmbito
das diretrizes do partido-mor. A esmagadora maioria dos pares,
inclusive gente que estudou com ele, pactuou com o regime que fechou
o teatro batizado com o nome do artista escanteado da cena cultural –
exceção a Stanislávski, a quem tinha como mestre, apesar das
divergências estilísticas, que o convidou a ser assistente de seu
teatro de ópera. Stanislávski morreu dez meses antes daquele
congresso. Convém parênteses para
trazer a lume a percepção de Meierhold a propósito do seu
professor e mestre a quem respeitava com o devido distanciamento
crítico, o que provavelmente o deixou em alta conta, o “único
encenador” que o ícone do Teatro de Arte de Moscou reconhecia,
como informa o artigo da pesquisadora francesa Béatrice
Picon-Vallin, Stanislávski
e Meyerhold. Solidão e revolta,
traduzido por Fátima Saadi e publicado na revista Folhetim
(número 30, 2013). Disse o discípulo após sua morte: “Ele tinha
necessidade de ter junto de si um revoltado que, para trabalhar,
arregaçaria as mangas. Era um magnífico pedagogo, um inventor, um
artista dotado de grande iniciativa. Ele amava a arte. Na arte ele
tinha colocado toda a sua vida. E nós, nós vamos querer conservar
suas quatro colunas? Elas que vão pro diabo! Eu não farei aliança
com vocês para defender essas quatro colunas. Estou acostumado a ser
escorraçado. Podem me mandar embora, se quiserem. Eu vou. Mas não
tenho nenhuma intenção de virar conservador de coluna”.
De volta ao congresso
divisor de águas, Meierhold discursou com veemência contra as
distorções geradas pelo realismo socialista, política pública da
era Stálin que preconizava formar as massas via temáticas
artísticas nacionalistas, reduzindo brutalmente a margem de invenção
do gesto criador. Castração impensável para quem foi contemporâneo
do cineasta Serguei Eisenstein, para nomear um dos gênios que, como
ele, também foi de alguma maneira cerceado e ainda assim alargou o
horizonte das artes.
“Vocês são os únicos
responsáveis pelo assassinato do teatro mais importante do mundo, o
teatro russo”, discursa. “Vocês são responsáveis pela
mediocridade rasa disso que chamam realismo socialista”, pontuou o
diretor, segundo a apropriação de Pavlovsky.
Meierhold foi preso
horas depois de se posicionar ante os colegas. Além de formalista,
foi acusado de adesão ao trotskismo (doutrina que, entre outras
coisas, defendia a “revolução permanente” em oposição à
teoria stalinista de “socialismo em um só país”) e de
espionagem para potências como Inglaterra e Japão – lembrando que
a Segunda Guerra Mundial seria deflagrada em setembro de 1939. Sua
execução aconteceu em 2 de fevereiro de 1940.