Caríssimo
Meyerhold,
Desculpe a formalidade, mas ela deve-se ao fato de ter te conhecido
há pouco tempo, apesar de já fazer praticamente 1 ano (ou seria
mais?) desde que fui convidada pelo Henrique Saidel a ver a encenação
de um texto criado pelo dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky que
mistura sua trajetória com os desassossegos vividos por ti no
cárcere. Ao lembrar daquela noite muitas sensações e sentimentos
se misturam, há pouco havia me mudado para Porto Alegre, era a
primeira vez no espaço Terreira da Tribo e que via a Tribo de
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz em um espaço fechado. Mergulhar no
seu imaginário criativo naquele momento acompanhava novas aberturas
no meu próprio cárcere privado que constantemente é renovado pelo
nomadismo voluntário que me impulsiona a viver em constante
revolução cultural, estética e política por esse Brasil.

No entanto, me sinto um pouco envergonhada de ter te conhecido tão
tardiamente e esta ser a primeira vez que te escrevo. Sinto muito
também, porque talvez minha carta te decepcione um pouco, já que
nela falarei mais sobre as mulheres que fizeram parte da cena da tua
vida e do teu teatro. Espero que tu
entendas que o caminho de uma mulher e nossa história sempre é
diferente, mesmo que nos encontremos para juntos fazermos a
revolução. Por isso, mesmo que tua vida, tua encenação
tenha chamado minha atenção, são Liubóv Popóva e Zinaida Reich
que moveram meu olhar, minha curiosidade e todos os meus sentidos
naquele dia. Tua fala guiava esse olhar, mas era o cenário de Popóva
e a movimentação de Zinaida que tornavam vivas suas palavras em
cena. Seu corpo pulsava em Paulo Flores e sentia que ele brilhava e
sua luz se reverberava em mim, de modo que posso afirmar que senti a
força e a presença de tua luta estética, no entanto, são elas que
despertaram minha curiosidade e quem quero conhecer e saber mais e
mais. Essas mulheres que sabemos tão pouco e cujos papéis desde
aquela época eram secundários, mesmo que unidas à mesma luta.
Mesmo que, na Moscou do inquieto século XX não fossem tratadas com
distinção nas universidades e em alguns círculos artísticos.
Mesmo que tu a elas e principalmente a ela assumisse
o compromisso criativo e amoroso
Meyerhold-Reich, que pelo que vi e ouvi de ti, de tua
dramaturgia e tua estética se constroem e se reconstroem por
contaminação, entrega e experimentação e que certamente surgem
desse encontro com elas, encontro que sem hesitação tu incorpora em
cena tornando-os parte de sua obra e de sua dramaturgia.
Agora, é importante revelar que meu interesse por elas se deve, não
apenas ao fato de termos em comum o fato de sermos mulheres, mas
porque sou apaixonada desde menina pela vanguarda russa,
principalmente pelo concretismo e posteriormente por tudo o que
veremos quando alguns e algumas dos principais nomes da Universidade
Soviética Vkhutemas se mudam para ensinar e participar da formação
da alemã Bauhaus. O que sabemos é que, na realidade, o cenário de
Popóva nos oferece muito mais do que uma maquinaria cheia de
roldanas, escorregadores e escadas, que acionam os corpos
espacialmente criando planos ou ruídos diferentes de fundo para a
cena. Não é apenas um dispositivo cênico, mas é resultado de um
processo criativo que tem como pedagogia de base o objetivo de
transformar o cotidiano da nova sociedade comunal através da criação
e da produção de uma estética que aproxime arte, artesania e
indústria. Essa é a revolução cultural que está acontecendo na
Rússia e da qual tu fizeste parte, mas como tu, teus parceiros e
parceiras é essa mesma revolução que os convida a se afastarem ou
os executam e os exterminam.

O que estava em jogo era a transformação social e Meyerhold,
tenho certeza que o senhor percebeu
que os corpos precisavam acompanhar as mudanças para que a revolução
de fato acontecesse, não é? No entanto, parece que mais uma vez, as
forças políticas retrógradas e os
corpos que as constituem não se transformaram ao mesmo tempo. Mais
uma vez o rolo compressor do conservadorismo enrijeceu a vida e a
verdadeira revolução não aconteceu. O senhor tentou e ousou
tornando a biomecânica parte crucial de tua metodologia e
dramaturgia. Entretanto, a sensibilização do corpo para que o texto
e a vida penetrem precisa acontecer não somente em cena, mas também
nas fábricas, nos corpos que carregam a vida do campo e que fazem a
roda da revolução girar. Essa roda grita em seus primeiros
movimentos e é ela que coloca as roldanas a girar. O ruído dessa
vanguarda mobiliza todos os sentidos e precisa ser sentido.
E esse ruído não foi silenciado. Aos poucos, mesmo que
aparentemente de forma silenciosa a revolução estética seguiu teus
passos. Um inventário inexaurível de novidades, de extravagâncias
e de prodígios conquistaram outros territórios e outras artes: a
Bauhaus Alemã e a França de Marcel Duchamp, com seus ready
mades, tencionaram ainda mais a função da arte e nos
modificaram totalmente nos anos que seguiram tua morte. Desejo te
acalentar contando que muitas transformações ocorreram no teatro,
mas principalmente na dança norte-americana, passando a ocupar um
importante papel na investigação da improvisação que o senhor
tanto valorizava. A intenção de negar e derrubar os paradigmas
continuou e continua viva. A experiência de rompimento entre o
artificial e o real, entre espaço do palco e da plateia, entre o
criador e o intérprete, entre o processo e a obra, entre o cotidiano
e a cena passaram a ser motores primordiais nas vanguardas que te
seguiram.
Anna Halprin é uma dessas artistas que apontou a pesquisa em
direção ao desenvolvimento de uma pedagogia para tornar bailarinas,
bailarinos, atores e atrizes mais aptos a se moverem adentrando novos
territórios, arriscando-se a se expor, a revelar-se em cena,
resolvendo no corpo soluções para problemas da improvisação.
Antes a improvisação, que em alguns casos, se restringia como
ferramenta do criador, agora convida todos a participarem da criação
por meio da improvisação, tendo como principal preocupação o
desenvolvimento de uma consciência sinestésica e não mais apenas
biomecânicas. Nestes acontecimentos, chamados de happenings,
artistas de diferentes linguagens passam a criar juntos. Tenho
certeza que tu ficarias muito feliz de ver, participar e continuar
contribuindo com suas inquietações e curiosidade. Tenho tanto pra
te contar, mas precisaria escrever muitas cartas para que o senhor
pudesse ver que não conseguiram matar teu legado.

Curioso, que agora, que estou a contar tudo
isso, sinto um misto de urgência com presença e flashes da peça
surgem em um ritmo alucinado, incorporado a um bandoneon veloz movido
por um canto surrealista sem nexo, que somente se acalma com a
movimentação de Zinaida. Fico confusa, não sei mais se estou
contigo no início do século XX ou se me encontro em 2019, ou mesmo
agora em junho de 2020. Meu desejo é mergulhar mais fundo, como
Zinaida, não quero ser apenas um títere a serviço da minha mente,
quero experimentar meu corpo escrito em minha fala, quero gritar e
deixar meu corpo tremer. Quero continuar essa tessitura, alinhar-me
ao teu fio, ao de Popóva, Zinaida e Keter Velho, ao de Eduardo,
Paulo e Henrique. Quero continuar a revolução e sei que não estou
sozinha.
Obrigada por tudo e um forte abraço,
Caroline Marim