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Por Altair Martins
Fotos de Pedro Isaías Lucas
O que não nos pode nunca passar em vão é que o Ói Nóis Aqui Traveiz é uma tribo e que essa tribo não apresenta, celebra. Por isso, aos 40 anos, a escolha da celebração da vida de Vsevolod Emilevitch Meierhold, a partir do texto Variaciones Meyerhold (2005), de Eduardo Pavlovsky, pede que muita coisa seja refletida – dentre elas, a celebração de uma estética e de uma ética.
Como espetáculo, Meierhold é um paradoxo: assistimos a dois atuantes que se desdobram para contar a história de outro atuante. Tudo fica comprimido, micro, e aí o espectador entende que tanto o texto, que nos chega por fragmentos anacrônicos, por textualidades distintas (poemas, falas, canções, conversas, gritos), quanto a imagem (os figurinos, a dinâmica do dispositivo cênico, a máscara, as informações via projeção, a luz e o som) servem a uma sensação de testemunho: testemunhamos, artistas e espectadores, a um momento da história que nos parece bater à porta. Estamos presos na cela de Meierhold, enquanto nossa Zinaida busca alternativas para nos salvar. Lá fora Stálin quer do teatro uma propaganda para o regime, e o que fazemos atrapalha a marcha de uma sociedade que deve obedecer aos imperativos mais absurdos – hoje, pedidos de retorno à ditadura. Daí a impressão de paradoxo, porque somos apertados numa cela para que pensemos a liberdade precária na qual vivemos. Somos colocados diante de uma tribo cuja marca sempre foi a dos espetáculos imensos, com procissões e ritos, agora apertada a uma cena em que dois atuantes devem celebrar conosco a memória dos que foram fustigados, a memória da arte e suas formas dolorosas de resistência. Também aí se deve entender a memória sobre os fatos presentes.
Quanto à estilização, termo de que Meierhold foi acusado e pelo qual foi assassinado e quase apagado da história, lembremos que estamos vendo teatro, o que, segundo o próprio Meierhold, é uma arte simbólica – daí a atenção dada ao cenário inspirado nos mecanismos cênicos da artista Liubóv Popova, mulher que transgrediu, além do universo marcadamente masculino das artes soviéticas, o império das formas óbvias. O cenário do Meierhold da tribo (criado pelo Eugênio Barboza e o Clélio Cardoso) é quase infantil, algo como um parque de diversões, não fosse o modo irônico (talvez trágico) como é usado. A geometria das formas, que replica a estética construtivista, ao mesmo tempo que se dispõe à cena, atua como uma de forma de máquina, que é a situação humana quando o humano está em vias de desaparecer. Por isso, nos momentos em que o dispositivo se mexe, para nós, espectadores, o tempo passa radicalmente sem que nos sintamos vivos. Também a luz de Clélio Cardoso, com seus focos brancos que interrogam o rosto de Meierhold, ou com cores sólidas a tornarem íntimas suas confissões e as falas de Zinaida, atuam no sentido de explorar ao máximo as condições mínimas que as personagens estão vivendo. Nisso tudo os figurinos é que são dialéticos, ora reproduzindo fardas, ora estilizando fardas, marcando as roupas de ontem e de hoje, num interessante jogo de confundir, pelo que é vestido, o que seja atual e o que seja obsoleto. Incluem-se aí recursos expressivos como a música, a recitação de poemas, alegorias como a Repressão, a máscara caricatural de Molotov e, mais ainda, as projeções – tudo é matéria informativa, a fornecer, pelo contexto histórico, o que as subjetividades em cena estão vivendo. A roupa negra do fim da peça, pelo tanto de indescritível, nos silencia.
Além disso, a peça pede que reflitamos sobre atores e atrizes, esses seres anfíbios que se dispõem à entrega do corpo e da voz a uma razão sem razão: realizar para pessoas estranhas, nem sempre as amigas, um espetáculo que eles, os atuantes, nunca poderão ver. Porque que de fato o atuar é incidir sobre alguém, fatiar o que pretensamente se dispunha inteiro. É o que devemos repensar depois de assistir a este Meierhold. Estamos à beira do torcicolo e, se somos obrigados a olhar pra trás, que possamos compreender que a História nunca está parada.
Pensemos fixamente no Meierhold que vemos em cena: ali se desfaz o Paulo Flores e sua história em prol de uma simbologia visceral que é a condensação da vida do homem de teatro russo. Ali o Paulo e seus um-metro-e-oitenta-e-tantos (talvez mais), pouco a pouco, nos trabalhos diários de construção de sua personagem, vão convivendo com Meierhold, pensando que o teatro não deve ser fotografia, que o teatro é a arte de denunciar a própria máscara, que o teatro é combate gradual, por centímetros de ideias, e o Paulo vai perdendo as vicissitudes pessoais para respirar a partir da biomecânica, mexer as mãos como se as mãos falassem, gritar mais pelas carnes do rosto que pela boca. (Ele crava os pés ossudos no soalho de madeira, e sentimos frio). Nessa estética de construção de um vocabulário físico-gestual, os cabelos brancos do Meierhold também falam quando ele tira a boina, e entendemos que a cabeça de um artista deve sustentar seus fios, ainda que brancos e ralos, em resistência.
Pensemos também nas múltiplas figuras que se desdobram da atriz Keter Velho e talvez possamos compreender porque nos impressiona, ao final da peça, quando conversamos com ela, que seja uma mulher pequena. Porque, durante a sucessão das cenas, ignoramos sua verdadeira altura, sobretudo quando seu corpo se expande, controlando as imagens ao redor. Os braços da Keter e as pernas da Keter estão ali para simbolizar a vida da Zinaida, a amada de Meierhold, rasgada ao meio e depois degolada ao fim do processo de “apagamento de ousadias”. Mas o corpo da atriz também se reinventa para atuar no “amigo” de Meierhold, o Molotov mascarado cujos gestos de deslizar pela cena bem evocam os descaminhos da política (e então as mãos da atriz ficam minúsculas e perigosas). E devemos também nos ocupar das figuras anônimas que a atriz engendra, sobretudo as alegorias de um regime que mata sem mostrar o rosto.
Então, podemos chegar à ética suscitada por este Meierhold da tribo. A plateia pequena também foi pensada pela o povo da Terreira, justificando o fato de que as subjetividades não se formam de fora pra dentro. Por isso, a ideia de um espetáculo “menor” (no sentido explicitado pela estética) gera também um efeito ético: que a arte é uma escolha, que a arte é um gesto espontâneo, um palpite, uma vivência. Daí o espetáculo joga forte contra o realismo (o mesmo realismo, salvas as distorções históricas, que poluiu o teatro russo nos anos de 1920) e, ao propor formas simbólicas, por vezes mínimas, exige do teatro atores que atuem e atores que assistam, o que nada mais quer dizer senão algo especular. Talvez por isso, nos colocando perto, o Paulo e a Keter consigam assistir a uma peça enquanto encenam outra. Trata-se, sim, de um momento de respiro poético que, pela metalinguagem, questiona tanto o realismo idiota dos efeitos especiais do cinema americano, quanto os pseudorrealismos dos programas das grandes mídias, da televisão à internet.
Assim, a conversa final com o público se constitui num desdobramento de protagonismos, quando o Paulo e a Keter se sentam para discutir o que vimos, o que eles viram. Entendemos que o teatro não representa nada: como os livros, o teatro é uma rasura que nos propõe aprender compartilhando nossos sentidos. E se é também uma resistência, estaremos lá para celebrar um outro agora.
Altair Martins é professor de Escrita Criativa na PUCRS e escritor. Como dramaturgo, publicou Guerra de urina (2018) e Hospital-Bazar (a sair em 2019).
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