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MEDEIA: DO MITO ATÉ MEDEIA VOZES | Jorge Arias

Fotos de Pedro Isaías Lucas

Medeia é um dos grandes enigmas da literatura ou, talvez, da história. O primeiro enigma é se existiu uma Medeia, real e histórica, uma mulher de carne e ossos, sobre a qual foi construído um mito, uma lenda, como aconteceu com os heróis lendários de Troia, que realizaram grandes, difíceis e impossíveis façanhas, mas tiveram como base alguma realidade, de alguma forma existiram. Alguns aspectos negam o caráter puramente mítico da história: a viagem dos argonautas até a Cólquida na margem oriental do Mar Negro, em busca do velocino de ouro, está de acordo com as expedições comerciais dos gregos; as intrigas do palácio, como o exílio de Medeia em Corinto, têm uma cor de verdade; e, acima de tudo, a apaixonada controvérsia sobre se ela matou ou não seus filhos. Não se discute ou, ao menos, não é comum discutir o que faz ou não faz uma personagem de ficção.

 

 



O segundo enigma é o caráter dela. Medeia é neta de Hélio, sacerdotisa de Hécate, feiticeira, bruxa. É uma mãe sem alma que mata seus filhos, como oblíqua vingança contra seu marido, ou uma mulher perseguida, vítima de conspirações? Esta ambiguidade é um charme, um feitiço; os eruditos trocam de ideias sobre ela de uma obra para outra. Robert Graves disse em La diosa blanca (tradução para o espanhol de White Goddess Losada, Argentina, 1950, pág.107) que houveram duas Medeias: uma, a deusa, que matou seus filhos, outra que matou Talos e, através de intrigas, Pélias. Mas em sua obra The Greek Myths (Penguin Books 1955, London, Nº156 f, T. 2, pág. 255) sustenta que foram os coríntios que mataram os meninos como vingança da morte de Glauce e Creonte pelas mãos de Medeia, e subornaram Eurípides para dissimular seu crime aos olhos da posteridade. A afirmação de Graves implica na crença da existência real de Medeia; e ele - que fez um capítulo sobre seres mitológicos menores, como Lâmia ou Tyche - não concedeu um capítulo inteiro e exclusivo às façanhas de Medeia, cuja vida devemos reconstruir em não menos que sete menções. No entanto, escreve um livro sobre o velocino de ouro, que é necessariamente um livro sobre Medeia. Parece que o personagem se apodera do autor, ou que o autor atinge a personagem: uma crítica que assinala, ou parece assinalar, um paralelismo entre a vida de Graves, fraco e irresoluto (Jasão), e uma de suas amantes, Laura Riding (Medeia); e ainda entre “as duas” Christa Wolf, a quase heroína do dissenso na República Democrática de Alemanha e, ao mesmo tempo, como foi revelado em 1993, “colaboradora extra oficial” da polícia secreta, a Stasi. Nesta linha, é interessante notar que J.J. Bachofen em seu livro Le droit maternel (1861; pág. 103, edição de L’ Age d’Homme, Lausanne, 1996) sustenta que Medeia matou os filhos que Jasão teve com Glauce, e não os seus próprios filhos; Pausânias conta que em Corinto “... e perto dele” (o Odeon) “é o sepulcro dos filhos de Medeia, seus nomes são Mérmero e Feres, e se disse que eles foram apedrejados pelos coríntios por causa dos presentes que levaram a Glauce” (Descripción de Grecia, livro II, pág. 152, tradução espanhola da ed. Planeta DeAgostini, 1995) 

 


A versão do Ói Nóis Aqui Traveiz se apoia no romance de Crista Wolf. Obra da imaginação, Wolf cria personagens, intrigas, cenas e até um namoro da protagonista. Medeia descobre um crime do rei de Corinto e é falsamente acusada de causar uma epidemia de peste; do início ao fim, é vítima de conspirações: uma de seu irmão Absirto e a outra dos coríntios. O estilo é redundante, tão árido quanto seleto, tão “literário” quanto tedioso. É possível que fosse uma boa mulher acossada por inimigos poderosos e constantes, mas nós preferimos a feiticeira criminosa, a mulher que não morre, a mãe de quatorze filhos, a namorada cheia de paixão que chega ao ponto de cometer um crime... Os heróis dos melhores romances e do melhor teatro, (Balzac, Shakespeare), se põem de pé, saem da cena ou das páginas; são, como escreveu Oscar Wilde, ao mesmo tempo inferno e céu. A Medeia de Wolf é bidimensional e triste; a Medeia mitológica é viva, dolorosa, patética, humana. Na mitologia grega Medeia não morre, mas chega aos Campos Elíseos e, segundo algumas versões, às Ilhas Afortunadas, residência melhor que os Campos Elíseos, onde mora como esposa de Aquiles, o herói da Ilíada. Porém, somente se pode atingir os Campos Elíseos após uma vida virtuosa; todos nos perguntamos, como pode Aquiles, vaidoso, arrogante, cruel e Medeia, bruxa e criminal, serem julgados como “virtuosos” por um tribunal que preside Minos? Eles têm não uma virtude, mas a virtude, a virtude que é a rainha das virtudes: a valentia, a coragem. Eles não conheceram o medo.

 


A Medeia de Christa Wolf foi um roteiro sobre o qual o Ói Nóis Aqui Traveiz construiu uma peça comovedora, real e imaginativa. A paixão que não aparece em Wolf, a Tribo possui. Nietzsche escreve que os clássicos da tragédia grega foram libretistas de ópera; a Tribo proveu a música, as canções, tudo isso que faz do teatro clássico uma sínteses de arte, religião, filosofia. O reino de Dionísio. Apareceu, num dos momentos mais fortes da peça, Ulrike Meinhof, a guerrilheira urbana (1934-1976), a Medeia natural, uma mulher com “pedras nas veias” que escreveu “Lançar uma pedra é uma ação punível. Lançar mil pedras é uma ação política”. A peça recupera a mitologia: ao fim, Medeia, numa interpretação de Tânia Farias que atingiu a perfeição, se perde na noite, fora da cena e do mundo da arte, é a Mulher, triunfante e perseguida; a Medeia que foi expulsa primeiro de Corinto e depois de Atenas; sozinha, mas sempre uma rainha.





*Jorge Arias é pesquisador teatral e crítico do jornal La República de Montevidéu.