Fotos de Pedro Isaías Lucas
Medeia é um dos grandes enigmas da literatura ou, talvez, da
história. O primeiro enigma é se existiu uma Medeia, real e
histórica, uma mulher de carne e ossos, sobre a qual foi construído
um mito, uma lenda, como aconteceu com os heróis lendários de
Troia, que realizaram grandes, difíceis e impossíveis façanhas,
mas tiveram como base alguma realidade, de alguma forma existiram.
Alguns aspectos negam o caráter puramente mítico da história: a
viagem dos argonautas até a Cólquida na margem oriental do Mar
Negro, em busca do velocino de ouro, está de acordo com as
expedições comerciais dos gregos; as intrigas do palácio, como o
exílio de Medeia em Corinto, têm uma cor de verdade; e, acima de
tudo, a apaixonada controvérsia sobre se ela matou ou não seus
filhos. Não se discute ou, ao menos, não é comum discutir o que
faz ou não faz uma personagem de ficção.

O segundo enigma é o caráter dela. Medeia é neta de Hélio,
sacerdotisa de Hécate, feiticeira, bruxa. É uma mãe sem alma que
mata seus filhos, como oblíqua vingança contra seu marido, ou uma
mulher perseguida, vítima de conspirações? Esta ambiguidade é um
charme, um feitiço; os eruditos trocam de ideias sobre ela de uma
obra para outra. Robert Graves disse em La diosa blanca
(tradução para o espanhol de White Goddess Losada,
Argentina, 1950, pág.107) que houveram duas Medeias: uma, a deusa,
que matou seus filhos, outra que matou Talos e, através de intrigas,
Pélias. Mas em sua obra The Greek Myths (Penguin Books 1955,
London, Nº156 f, T. 2, pág. 255) sustenta que foram os coríntios
que mataram os meninos como vingança da morte de Glauce e Creonte
pelas mãos de Medeia, e subornaram Eurípides para dissimular seu
crime aos olhos da posteridade. A afirmação de Graves implica na
crença da existência real de Medeia; e ele - que fez um capítulo
sobre seres mitológicos menores, como Lâmia ou Tyche - não
concedeu um capítulo inteiro e exclusivo às façanhas de Medeia,
cuja vida devemos reconstruir em não menos que sete menções. No
entanto, escreve um livro sobre o velocino de ouro, que é
necessariamente um livro sobre Medeia. Parece que o personagem se
apodera do autor, ou que o autor atinge a personagem: uma crítica
que assinala, ou parece assinalar, um paralelismo entre a vida de
Graves, fraco e irresoluto (Jasão), e uma de suas amantes, Laura
Riding (Medeia); e ainda entre “as duas” Christa Wolf, a quase
heroína do dissenso na República Democrática de Alemanha e, ao
mesmo tempo, como foi revelado em 1993, “colaboradora extra
oficial” da polícia secreta, a Stasi. Nesta linha, é interessante
notar que J.J. Bachofen em seu livro Le droit maternel (1861;
pág. 103, edição de L’ Age d’Homme, Lausanne, 1996) sustenta
que Medeia matou os filhos que Jasão teve com Glauce, e não os seus
próprios filhos; Pausânias conta que em Corinto “... e perto
dele” (o Odeon) “é o sepulcro dos filhos de Medeia, seus nomes
são Mérmero e Feres, e se disse que eles foram apedrejados pelos
coríntios por causa dos presentes que levaram a Glauce”
(Descripción de Grecia, livro II, pág. 152, tradução
espanhola da ed. Planeta DeAgostini, 1995)
A versão do Ói Nóis Aqui Traveiz se apoia no romance de Crista
Wolf. Obra da imaginação, Wolf cria personagens, intrigas, cenas e
até um namoro da protagonista. Medeia descobre um crime do rei de
Corinto e é falsamente acusada de causar uma epidemia de peste; do
início ao fim, é vítima de conspirações: uma de seu irmão
Absirto e a outra dos coríntios. O estilo é redundante, tão árido
quanto seleto, tão “literário” quanto tedioso. É possível que
fosse uma boa mulher acossada por inimigos poderosos e constantes,
mas nós preferimos a feiticeira criminosa, a mulher que não morre,
a mãe de quatorze filhos, a namorada cheia de paixão que chega ao
ponto de cometer um crime... Os heróis dos melhores romances e do
melhor teatro, (Balzac, Shakespeare), se põem de pé, saem da cena
ou das páginas; são, como escreveu Oscar Wilde, ao mesmo tempo
inferno e céu. A Medeia de Wolf é bidimensional e triste; a Medeia
mitológica é viva, dolorosa, patética, humana. Na mitologia grega
Medeia não morre, mas chega aos Campos Elíseos e, segundo algumas
versões, às Ilhas Afortunadas, residência melhor que os Campos
Elíseos, onde mora como esposa de Aquiles, o herói da Ilíada.
Porém, somente se pode atingir os Campos Elíseos após uma vida
virtuosa; todos nos perguntamos, como pode Aquiles, vaidoso,
arrogante, cruel e Medeia, bruxa e criminal, serem julgados como
“virtuosos” por um tribunal que preside Minos? Eles têm não uma
virtude, mas a virtude, a virtude que é a rainha das virtudes: a
valentia, a coragem. Eles não conheceram o medo.

A Medeia de Christa Wolf foi um roteiro sobre o qual o Ói Nóis
Aqui Traveiz construiu uma peça comovedora, real e imaginativa. A
paixão que não aparece em Wolf, a Tribo possui. Nietzsche escreve
que os clássicos da tragédia grega foram libretistas de ópera; a
Tribo proveu a música, as canções, tudo isso que faz do teatro
clássico uma sínteses de arte, religião, filosofia. O reino de
Dionísio. Apareceu, num dos momentos mais fortes da peça, Ulrike
Meinhof, a guerrilheira urbana (1934-1976), a Medeia natural, uma
mulher com “pedras nas veias” que escreveu “Lançar uma pedra é
uma ação punível. Lançar mil pedras é uma ação política”.
A peça recupera a mitologia: ao fim, Medeia, numa interpretação de
Tânia Farias que atingiu a perfeição, se perde na noite, fora da
cena e do mundo da arte, é a Mulher, triunfante e perseguida; a
Medeia que foi expulsa primeiro de Corinto e depois de Atenas;
sozinha, mas sempre uma rainha.
*Jorge Arias é pesquisador teatral e crítico do jornal La
República de Montevidéu.