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| Parte 1 | MEDEIA VOZES: Por uma revivência do trágico [entre o não-lugar e a utopia]

| PARTE 1 |

E eu, para onde irei? Haverá um mundo, um tempo, com lugar para mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta. A ferida sara, quando os gritos morrem. O sofrer tem limites, além dos limites fica um nada obtuso, onde se suporta o insuportável. O grito travado na garganta sobe como câncer na alma, nasce muito mais tarde e derruba os palácios.

Último monólogo de Medeia, em Medeia Vozes, direcionado ao público.


Fotos: Pedro Isaias Lucas

Comecemos pelo final. Ouçamos o eco do grito mudo. Para que escutemos em que vozes este renascerá. Embora devido à labiríntica não-linearidade do Medeia Vozes talvez pudéssemos começar por qualquer uma de suas cenas, por qualquer uma de suas vozes. Mesmo assim eu os convido a ingressar pela saída desta peça multipremiada da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – os convido a entrar no espaço em que os atuadores dessa tribo nunca voltam para receber os aplausos, justamente porque as palavras, signos e presenças das últimas cenas desse “teatro de vivência” (cujo elemento estético e político central é exatamente o da con-vivência), nos desafiam a não ver o final da peça como um ponto final, mas sim como continuação de uma linha de reflexão profunda sobre, entre outras coisas, os significados e a potência do não-lugar.

Após três horas de um teatro ritual que comporta múltiplas temporalidades e espaços, somos conduzidos à frente de uma sala feita quase impenetrável pela quantidade de árvores e galhos secos lá instalados. No fundo deste inóspito ambiente, é por entre os galhos que avistamos uma Medeia envelhecida que, sentada numa pedra, compartilha um elemento chave da sua versão da história:


Mortos. Apedrejados. E eu que pensei que sua sede de vingança terminaria com a minha saída. Cega. Pensava nas crianças como se de vivos se tratassem. Não foi desta vez que os coríntios me deixaram em paz, dizem que eu matei meus filhos. Que eu, Medeia, quis me vingar da traição de Jasão. Quem vai acreditar numa história destas?


A grande ironia deste questionamento que é feito diretamente a nós, é que nos coloca na posição de crédulos e ignorantes, ao mesmo tempo que nos incita a questionar o que nos levou a acreditar nisto. Foi este tipo de questionamento que levou Christa Wolf a desafiar a versão de Eurípedes na qual uma mulher traída é movida pelo desejo de vingança a cometer o mais hediondo dos crimes: matar os próprios filhos. Além disso, na versão clássica, ela trai a própria família, assassina seu irmão, mata a “Outra” e, acidentalmente, causa a morte do futuro sogro de seu marido, Rei de Corinto, adicionando, assim, o regicídio à sua lista de crimes. Ao investigar outras versões do mito de Medeia, a escritora alemã, dando continuação ao seu projeto revisionistai de cunho feminista, traça um retrato de uma mulher cujo único delito talvez tenha sido o de abandonar a sua própria terra, ao invés de permanecer e resistir às mudanças que cada vez mais soterravam os velhos princípios de sua sociedade de raízes matriarcais. Devido a seus poderes mágicos e por saber demais, ela foi usada pelo marido e demonizada pelo poder civilizatório de Corinto – seu novo lar que nunca a aceitou – como bárbara, assassina e bruxa.

 


 

 

Seguindo estratégias cênicas multissensoriais, multiespaciais, de caráter itinerante, imersivo e interativo, as quais fazem parte de uma linguagem denominada “teatro de vivência” que vem sido desenvolvida ao longo das décadas, o Ói Nóis, em sua interpretação da Medeia Vozes de Wolf, também explora a riqueza do bidimensional, que serve, a meu ver, como metáfora para um dos temas centrais da peça: o reducionismo e achatamento humano que a vitória do racionalismo patriarcal “civilizado” sobre o mundo bárbaro matriarcal representam. Isso se manifesta na cena através do apedrejamento a que Medeia se refere, pois este é representado pelo ataque de “cães” (interpretados por atores cobertos em peles) que atiram sacos de tinta vermelha em um desenho retratando duas crianças. A linguagem gráfica deste desenho de giz é a infantil, na qual a figuração humana se compõe através de riscos e círculos. Neste sentido, o assassinato é ludicamente sugerido mas somente confirmado pelo monólogo que abre a última cena. Além disso, a representação dos agentes da pólis, da civilizada cidade-estado de Corinto, como cães e a dos filhos de Medeia como simples figuras rabiscadas claramente ressignifica os primeiros como bárbaros (invertendo portanto os papéis entre agentes bárbaros e civilizadores) ao passo que minimiza o papel dos filhos e da identidade de Medeia como mãe.

Apesar deste monólogo final evidenciar um número de contradições, creio que o paradoxo maior surge no momento em que Medeia declara:

Agora sou superior a eles. Onde quer que me toquem com as suas cruéis antenas, não encontram em mim uma réstia de esperança ou de medo. Morreu o amor, e também a dor se apaga. Sou livre. Sem desejos, escuto o vazio que me enche toda.

A conquista desse “vazio cheio” alcançado através de experiências extremas, a liberta justamente porque estas a levaram a transcender toda a dor, medo, desejo e esperança, posicionando-a no que podemos chamar de não-lugar.

Etimologicamente falando, o não-lugar é a tradução de “utopia”, no sentido de um lugar que só existe na imaginação, mas que impulsiona a ação humana em direção a construção de um mundo melhor. Contudo, nessa reinterpretação feminista do mito de Medeia, ela, ao invés de ser salva por Hélios (escapando de qualquer punição pelos seus ditos crimes) é condenada ao não-lugar no seu sentido mais profundo: ao espaço do exílio contínuo, apesar de ser uma inocente vítima de calúnias. O tom profetizador de sua despedida, no entanto, anuncia que todo seu sofrimento, por mais inexorável que pareça, há de eventualmente se transmutar em energia revolucionária – o que de forma paradoxal semeia a utopia em pleno território distópico.

Esta leitura se confirma, de certa forma, pela maneira com a qual Medeia, virtuosamente interpretada por Tânia Farias, abandona o espaço de representação e, como se não houvesse nenhum limiar entre este e o espaço do cotidiano urbano, caminha lenta e deliberadamente para fora do teatro. Ao passo que ela se mete rua escura adentro, carregando um cargo de galhos no ombros até desaparecer do alcance de nossos olhares, as fronteiras entre a ficção e o “real” são obliteradas e o seu drama de mulher pária e marginalizada por suas origens é transposto ao nosso cotidiano, a essa realidade de tamanha disparidade social. Mas o gesto também ressignifica a estória contada por Wolf: se o vazio a bastasse, por que continuaria na labuta, se confundindo com outros trabalhadores informais que vivem dos detritos urbanos?

Nesse sentido, a desmistificação do mito também acaba por tocar os estigmas sociais acerca de trabalho urbano informal. Além disso, a jornada de Medeia, que (na versão do Ói Nóis) inclui as vozes de outras “Medeias” do século XX, vindas de distintos países da Europa, África, América Latina e Ásia, como Rosa Luxemburgoii, Ulrike Meinhofiii, Waris Dirieiv, Domitila Chungarav e Phoolan Devivi, o que empresta maior contemporaneidade à encenação. Ao desembarcar na rua – num final sem fim, num caminhar pelo Brasil, Porto Alegre, Bairro São Geraldo adentro – Medeia não só ocupa o não-lugar, aquela tábula rasa, aquele vazio abismal que por vezes é necessário para impulsionar a visão utópica, como também faz desta desconstrução da tragédia clássica, uma tragédia verdadeiramente contemporânea.

Mas qual é a essência da experiência da tragédia e como ela pode ser ativada nos palcos de hoje? Será que o teatro contemporâneo é ainda capaz de produzir uma experiência do trágico para o público?vii O que traz contemporaneidade para o trágico? E ainda, haverá lugar para a experiência do trágico num mundo no qual o excesso de acesso a informações (que dá preferência à quantidade em detrimento de um aprofundamento destas) gera, como consequência, uma epistemologia marcada pela falta de atenção prolongada e pela diminuição da capacidade empática? Ou seja, será que podemos nesse mundo marcado pelo excesso de informações, que geralmente resultam numa certa “dessensitivização” acerca do sofrimento alheio, viver o trágico dentro do âmbito da representação? E se for, qual seria a especificidade do trágico dentro do “teatro de vivência”? E como fazê-lo fugir do efeito catártico já indicado por Brecht e Boal como culpado por reproduzir o conformismo? E por que essa preocupação com o trágico? Qual o seu potencial?


Talvez a resposta para essas perguntas deva partir do começo: isto é, a partir de reflexões sobre a tragédia grega como gênero teatral. Segundo Stephan Baumgärtel, o herói da tragédia clássica não só aciona as “duas forças culturais e políticas opostas: o mundo tribal e matriarcal antigo e o mundo político e patriarcal novo” (que acabam por dilacerá-lo), como é posicionado “no centro de um conflito que não é moralista nem individual, mas coletivo e político, o que confere à sua dor e seu terror uma dimensão não privada. A composição moderna, contudo, mostra que o herói simplesmente tomou a decisão errada.” Então pode-se dizer que se trata de uma distinção entre a ética da tragédia grega e a moralidade como se viu nas tragédias sentimentais do século XVIII cujo objetivo era a educação moral da burguesia. 


 

 

Notas: 

i Seu projeto revisionista acerca das protagonistas marginalizadas da mitologia grega foi iniciado com Kassandra (1984), que também serviu de inspiração para a criação coletiva Aos que virão depois de nós: Kassandra in process (2002), mais um trabalho de vivência da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e sobre o qual escrevi para a Cavalo Louco e para o Text & Presentation:Excavating Multiple ‘Troys’: An Embodied Deconstruction of the Scenario of Conquest through Teatro de Vivência.” (2006)

ii (1871-1919) Foi teórica marxista, filósofa, economista e socialista revolucionária e dirigente política de descendência polonesa judia. Famosa por sua luta revolucionaria ligada a partidos sociais democratas e comunistas. Fundadora do partido comunista alemão e grande mártir da esquerda.

iii (1934-1976) Foi uma jornalista e militante de extrema-esquerda alemã, e co-fundadora da organização armada Fração do Exército Vermelho. Presa em 1972 e encontrada morta em sua cela em 1976. Mesmo que tenham declarado que tenha se suicidado, a razão de sua morte continua sendo controversa.

iv (1963-2001) Indiana, era popularmente conhecida como a “Rainha Bandida”, e mais tarde tornou-se política. Foi vitima de violência e estupro pela polícia e por bandidos, o que a levou ao crime, para fazer justiça com as próprias mãos.

v (1965) Modelo, autora e ativista e embaixadora da ONU de origem somali que lidera a luta mundial contra a mutilação genital feminina.

vi (1937-2012) Líder trabalhista e feminista boliviana que lutou contra a opressão de trabalhadores e contra o regime militar. Uma de suas conquista foi conseguir anistia aos presos políticos através de uma greve de fome que teve milhares de seguidores.

vii Essas perguntas foram em parte instigadas pela leitura de Diálogos com o trágico, um dossiê da companhia PH2: Estado de Teatro, cuja proposta é de criar espetáculos que buscam encenar a falta da sensação trágica na vida contemporânea.

viii Em seu famoso livro: O teatro do oprimido (1974)