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| Parte 2 | MEDEIA VOZES: Por uma revivência do trágico [entre o não-lugar e a utopia]


Fotos de Pedro Isaias Lucas



A palavra “ética” é derivativa do termo grego “ethos”, que significa “caráter” e pode, desta forma ser definida como um estudo de caráter. Mas a ética não se constitui em determinar o que ou quem é certo ou errado, bom ou mal, mas sim em examinar e questionar a lógica que motiva nossas ações e que nos permite julgá-las boas ou más, certas ou erradas. E é por isso que considero a questão do trágico e a necessidade da sua reinterpretação e adaptação ao mundo pós-moderno crucial para a redefinição da potência política do teatro.

A essência da tragédia pode ser vista não somente como a apresentação de um conflito insolúvel que retrata, como resultado, o sofrimento extremo do protagonista e que visa instigar piedade e terror no público, a fim de purificá-lo dessas emoções, como teorizou Aristóteles. Podemos encontrá-la também em sua função: ou seja, na noção de que a tragédia propõe questões que levam ao desenvolvimento ético do indivíduo. O problema com a teoria aristotélica, como já ressaltou Augusto Boal, é que ela elogia o teatro como benéfico (não só para o indivíduo como para a sociedade), porque este encoraja o treinamento das emoções de forma a conter seus excessos e cultivar a sua moderação, ou seja, seu benefício se encontra na sua capacidade apaziguadora de todo impulso de contestação às normasi. Para Aristóteles, a sociedade normativa começa com o indivíduo, então por mais que a visão da ética no mundo grego esteja centrada nele, ela visa a dimensão política, mas por razões e fins bastante conservadores.

Mas então o que se aproveita da tragédia quando se quer fazer teatro de cunho social? Creio que não o gênero, mas sim o trágico em si, precisa ser resgatado. E, acima de tudo, a instigação ética do público e o forte impacto emocional, que acredito não ser antitético ao engajamento crítico; bem pelo contrário: creio que no regime epistêmico atual (que já descrevi como um processo que deixa-nos na maioria das vezes imunes ao sofrimento alheio), só a profunda empatia pode nos fazer reagir. Mas para isto ela precisa ser instigada por uma forma de encontro que é radicalmente diferente daquela que mantém os atores num palco e o público no escuro, somente observando. E a fim de aprimorarmos a ligação entre a ética e o teatro iniciada com os gregos, precisamos, antes de mais nada, redefinir o próprio ethos (caráter) da ética. Ao invés de uma ética centrada no desenvolvimento do indivíduo (que no fundo visa o controle social), ou numa ética utilitária na qual os fins justificam os meios (que têm justificado tanta injustiça social e devastação ambiental em nome de um progresso futuro), precisamos desenvolver uma ética centrada no Outro, como teorizou o filósofo Levinasii. De acordo com Nicholas Ridout:

a performance concebida em relação com a ética pós-moderna de Levinas encoraja o espectador a não mais percebê-la como uma exploração de sua subjetividade, mas sim como uma oportunidade de viver um encontro com o outro.iii

Hans-Thies Lehmann, no seu livro Teatro pós-dramático (1999), também traça uma ligação entre estética e ética, ao propor que o teatro pode intervir na estrutura de percepção mediada pela mídia, no sentido de responder ao paradigma epistemológico pós-moderno com uma “‘política de percepção’ que também poderia ser chamada de estética de responsabilidade (ou habilidade de resposta).”iv

Dificilmente outro tipo de teatro pós-dramático faz esse encontro e essa estética mais tangíveis do que aquele no qual há interações tão diretas e íntimas entre ator e espectador, como o “teatro de vivência” desenvolvido pelo Ói Nóis. Na Terreira da Tribo o espectador nunca é um “voyeur”. Como ele nunca está fora da cena, passa a fazer parte da narrativa, tanto como testemunha quanto como ator coadjuvante, o que inclusive às vezes parece servir de substituto a personagens ausentes. Toda a cena possui uma atmosfera de ritual, um ambiente de troca, como se estivéssemos em volta de um contador de estórias, que ora narra o passado, ora vive o seu presente com a gente.

Por exemplo, após revelar-nos o segredo de Corinto, de que uma das filhas do rei tinha sido sacrificada, Medeia traça paralelos entre ela e seu irmão que fora morto pela mesma razão: a sede pelo poder que faz com que os reis temam serem sucedidos. Fora, aliás, por essa razão e não por paixão a Jasão, como contou Eurípedes, que ela fugira de sua família e de sua terra, ou seja, devido aos abusos do poder que corrompiam a forma de vida de seu povo. A revelação acontece dentro de uma caverna. Nesse monólogo as duas vítimas se confundem na memória de Medeia ao passo que ela se dirige a diferentes espectadores como se estivesse falando com o espírito do falecido irmão:

Noite após noite o mar volta a espumar; noite após noite ele volta a engolir seus ossos (...) Choro finalmente (...) noite após noite os meus dedos voltam a apalpar aqueles ossos que encontrei na caverna sob o palácio, o omoplata de criança, a espinha frágil.

Não só os ossos do irmão se confundem com os da menina encontrada na caverna, como também os espaços se sobrepõem: quando ela se refere à caverna, é como se não estivesse ali, naquele momento da enunciação, ali mesmo, com todo o público encolhido dentro daquele espaço acolhedor e sombrio ao qual somente as mulheres tinham acesso, naquele espaço útero, que no entanto era um túmulo, onde jazia o esqueleto da sacrificada e cujo chão parecia estar coberto de ossos. Em sua próxima frase ela se aproxima ainda mais de um espectador, e com olhos cheios de lágrimas, confessa a “seu irmão”: “ ‘Ifínoe’, ela é mais sua irmã do que eu alguma vez o pude ser”. E rapidamente, virando-se para um outro, ela continua a sua confissão, ainda mais próxima: “Quando acordo banhada em lágrimas, não sei se chorei por ti ou se por ela”. Essa intimidade com que a “atuadora” trava o encontro com o outro, tende a gerar uma empatia que, distinta daquela que vivemos vicariamente através do protagonista de uma peça que posiciona o espectador como observador passivo, não há de nos purgar de emoções indesejadas, nem tampouco de nossa cumplicidade. Pelo contrário, como sugerem Lehman e Ridout, ela possibilita que as questões éticas levantadas por esse tipo de relação entre o atuador e o espectador participante, sejam vistas sob a ótica da ética voltada ao outro. Ou ao menos podemos afirmar que a estética desse encontro com o trágico, que passa a ser não só a condição do outro, nutre tanto a capacidade empática quanto a ética. Principalmente quando se trata de transposições da tragicidade para o nosso momento (tais como essa), esta estética-ética possibilita a construção da dimensão utópica do trágico contemporâneo. Não porque ela forneça uma solução ao conflito insolúvel, mas sim porque incite um sentido de profunda cumplicidade e responsabilidade de buscar respostas, juntos.

Além disso, as várias temporalidades, a duração, e o aspecto metamórfico do espaço cênico também podem contribuir para o aprofundamento de trocas e de seus efeitos. Isso sem falar da riqueza e beleza dos signos cênicos, que fundindo simbolismo e surrealismo são contrapostos à materialidade e realidade de nossa convivência dentro do quadro fictício, absorvendo-nos na busca de seus múltiplos significados: a cama/árvore de onde crescem galhos, que evoca também barco, prisão, trampolim de pesadelos; a ponta dos dedos de Medeia pintados de vermelho (porque como disse Leucon: “Quem se serve das mãos tem de mergulhá-las em sangue, quer queira, quer não. Eu não quero ter mãos ensanguentadas”); os milhares de pedacinhos de cascas de coco no corredor que leva à caverna e ao seu interior, sobre os quais caminhamos temerosos, os quais produzem sons que nos dão a sensação de estarmos caminhando sobre um mar de ossos; os tapetes orientais que viram paredes, revelando e escondendo segredos da Cólquida, em contraste com as paredes minimalistas movediças de Corinto, que bloqueiam, encurralam e ameaçam os nossos corpos; a areia que é derramada de sapatos, simbolizando o corpo ausente dos que foram vítimas do holocausto; a balança gigante onde a ré Medeia é pesada (contra um pedaço de carne crua) durante seu tribunal, gestusv que traduz o valor de um corpo marcado por múltiplas marginalizações: mulher, feiticeira, estrangeira. Um corpo que já era culpado antes mesmo de virar bode expiatório para os crimes do poder patriarcal.

 


Agora, fenomenologicamente falando, é importante ressaltar as maneiras pelas quais a longa duração dessa peça-ritual, juntamente com a desorientação espacial que desafia a percepção do espaço como fixo e imutável age de contraponto à compressão do tempo e do espaço, que segundo David Harvey, são características do paradigma pós-modernovi. Ao deslocarmo-nos através de um espaço que constantemente se modifica, abrindo e fechando-se, revelando suas passagens secretas, fazendo-nos às vezes vulneráveis, outras protegidos, conduzindo-nos para onde quer, por um lado parece nos subjugar à sua “vontade” (tal qual o herói grego é subjugado pelo destino). No entanto, por outro lado, isso nos proporciona uma tremenda liberdade. Essa sensação de liberdade paradoxalmente aciona a ética pós-moderna de Levinas, ao nos forçar a negociar nossa posição com o outro. Ou seja, ao posicionar-nos em meio às várias cenas, precisamos considerar o outro, somos interpelados por essa dinâmica a buscar um ângulo, uma perspectiva que não perturbe aos outros. Claro que talvez seja um tanto utópico de minha parte presumir esse comportamento como resultante dessas dinâmicas de corpos e espaços, mas o que posso afirmar com certeza, é que tais dinâmicas nos levam a fazer escolhas que são simultaneamente estéticas e éticas e portanto, políticas.

Enquanto que parte dessas divagações dizem respeito ao “teatro de vivência” como um todo, se sobrepormos a essas a dimensão utópica do trágico já presente no texto de Medeia Vozes, talvez possamos então imaginar como essas estratégias cênicas possam aprofundar a sua apreensão. Mas é claro que esse efeito político-poético não é para todos. Creio que seja para aqueles que saibam sorrir no escuro. Sorrir no escuro e continuar acreditando nos significados secretos e mágicos do trágico, como o fez Rosa Luxemburgo, uma das vozes de Medeia, na cena em que ela se despede de seus filhos:

No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Nesses momentos penso em vocês. Gostaria tanto de passar-lhes essa chave mágica para que vocês percebessem sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também vocês vivam como que caminhando por um prado cheio de cores... Concedo-lhes todas as verdadeiras alegrias dos sentidos, para não me preocupar mais com vocês, para que andem na vida com um manto de estrelas protegendo-os, de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.

i Ver seu livro: Poética

ii Citado em Theatre & Ethics, de Nicholas Ridout (Palgrave & Macmillian, 2009) p. 50-53.

iii Idem, Ibid.

iv Idem, pgs: 56-59.

v “Gestus” é uma técnica de atuação desenvolvida por Brecht. Consiste em uma combinação de gesto e atitude que traduz as relações sociais do personagem e a causalidade de seu comportamento, de um ponto de vista materialista.

vi Em seu livro A condição pós-moderna, citado em O espaço da tragédia, de Gilson Motta, p. 66.