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TEATRO COMO LABORATÓRIO PARA IMAGINAÇÃO SOCIAL
Fotos de Eugênio Barboza
‘A Arte em todas as suas modalidades tem por função básica a estruturação e o desenvolvimento da sensibilidade e do pensamento dos seres humanos. O teatro tem por objeto a análise crítica e a exposição das relações inter-humanas, o que faz dele um dos mais poderosos aliados na luta permanente em favor da construção da cidadania.’
A história da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, criada em 1978, sempre se pautou pela firmação da diferença, da independência em relação ao mercado e às estruturas de poder, com encenações caracterizadas pela ousadia e liberdade criativa. As suas três principais vertentes são: o Teatro de Rua, nascido das manifestações políticas – de linguagem popular e intervenção direta no cotidiano da cidade – o Teatro de Vivência, no sentido de experiência partilhada, em que o espectador torna-se participante da cena – e o trabalho artístico Pedagógico, desenvolvido em sua sede, a Terreira da Tribo, e outros bairros populares junto a comunidade local. Desde a constituição da Terreira da Tribo, em 1984, o Ói Nóis desenvolve Oficinas Teatrais gratuitas e abertas a comunidade. Esses projetos estão voltados para o processo de aprendizagem teatral em vários níveis: a formação de plateia, o trabalho com não-atores e a formação de atores. Em todos existe a presença do projeto estético-ideológico da Tribo que ultrapassa os limites estéticos da cena na busca de uma sociedade mais justa, por isto a preocupação com a formação do cidadão, com consciência político-social, encontra-se no mesmo patamar que a formação artística do ator. A compreensão da importância da arte na formação do indivíduo emancipado, como um instrumento capaz de atuar criticamente em prol da transformação, está presente em todas as ações pedagógicas do Grupo. Em 1988 a iniciativa adquiriu maior dimensão: surge o Projeto Teatro Como Instrumento de Discussão Social, levando as oficinas até os bairros populares da cidade, com o objetivo de contribuir para a articulação política e cultural das comunidades distantes do Centro de Porto Alegre. O Projeto seria um meio de viabilizar movimentos culturais autônomos, procurando fortalecer o posicionamento político de uma população imersa em dificuldades. As primeiras experiências foram tentativas de contribuir para a tomada de consciência dos participantes através dos jogos teatrais, nas quais eram dramatizados assuntos trazidos pelos próprios oficinandos para, a partir daí, tratar de temas como cidadania e reflexão social. Embora nestas dinâmicas de trabalho de oficinas o teatro fosse o foco central, não havia, num primeiro momento, o objetivo de encenar peças teatrais. Os jogos dramáticos e a improvisação, eram meios para estimular a discussão.
No início dos anos 90 o Projeto Teatro Como Instrumento de Discussão Social estimulou a criação pela Secretaria Municipal de Cultura do seu Programa de Descentralização Cultural que teve nas Oficinas de Teatro a sua âncora fundamental. Foi um momento em que a cidade viveu um período extremamente rico de experiências de arte-educação em diversos bairros.
Com o desenvolvimento do Projeto Teatro Como Instrumento de Discussão Social o objetivo da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz passa a ser fomentar a organização de grupos culturais nos bairros. As Oficinas do Projeto propiciam às pessoas, em geral, o contato com o fazer teatral, acreditando na necessidade e no potencial artístico de todo o ser humano. Para alcançar o estado próprio à liberação da expressão teatral, a oficina desenvolve exercícios de relaxamento e concentração, aquecimento e jogos de envolvimento, passando, então, a têm como pretensão o comprometimento com a desmistificação e socialização dos processos artísticos, acreditando no potencial libertador do teatro e em sua necessária influência como fator gerador de autoconhecimento e maior consciência e atuação sociais.
Nessa perspectiva, o projeto busca trabalhar com os participantes um conhecimento teatral básico, incentivando-os a desenvolver: uma maior percepção da comunidade onde atua, vivência de uma atividade artística que permite uma ampliação de suas capacidades expressivas e consciência de grupo, através de uma prática pedagógica onde o educando participa como agente ativo no processo de aprendizagem. O aprofundamento deste processo o levaria a tornar-se um novo membro do coletivo, num caminhar gradativo para o aprofundamento da linguagem teatral dos atuadores.
Nas experiências teatrais em comunidades, a comunidade torna-se avaliadora de todo o processo. É no momento que ela vê em cena suas aspirações coletivas e sentindo-se inserida no ato artístico, percebe sua importância. A continuidade das oficinas depende da aceitação pela comunidade que funciona como um incentivador para a permanência do projeto com a formação de grupos de teatro pela comunidade. Os exercícios propostos durante as oficinas fazem o sujeito pensar com o corpo, ou seja, provocam e proporcionam ao oficinando/aluno a percepção das dimensões e expressividades que podem acionar corporalmente fora da lógica cotidiana do uso do corpo. Os oficinandos/alunos além da iniciação ao conhecimento teatral, estão redescobrindo sua cidadania e redefinindo seu papel no seio da sociedade. Em cada bairro a Oficina de Teatro é ministrada por um oficineiro/atuador diferente. Anualmente a Tribo organiza a Mostra Ói Nóis Aqui Traveiz – Jogos de Aprendizagem na qual são apresentadas e discutidas as cenas/peças criadas, promovendo o intercâmbio entre as produções realizadas pelas diferentes oficinas. A Mostra dos exercícios cênicos realizados nos diferentes bairros integra o cronograma das oficinas.
A partir da experiência desenvolvida com as Oficinas Populares de Teatro, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz constituiu, em agosto de 2000, a Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo.
Nos procedimentos que os atuadores do Ói Nóis Aqui Traveiz ministram nas oficinas de teatro vamos encontrar um descentramento da tradicional função do oficineiro/professor para uma forma mesclada na relação ensino aprendizagem, pois o que verificamos é a inexistência da função de transmissor de conhecimento, também não estaria na posição daquele que facilita e observa o processo de aprendizagem, mas o artista/oficineiro está imerso no processo, vivenciando as mesmas questões que os oficinandos/alunos e, coletivamente, construindo um aprendizado. Esta perspectiva de ensino está relacionada a um processo pedagógico para que o aprendizado se realize por via da experimentação, trabalhando a partir da heterogeneidade do grupo. A função de um oficineiro/professor participante, colaborador, mediador, facilitador vai a sua radicalidade, ou a sua própria negação, entendendo que o processo de aquisição de conhecimento está mais próximo da relação mestre-discípulo no que se refere ao grau de respeito e compreensão do trabalho artístico desenvolvido pelos atuadores e percebido pelos oficinandos/alunos. Mesmo em momentos nos quais ocorrem tensionamentos, não existe uma posição determinante. Todas as questões são colocadas coletivamente e assim discutidas. O que os atuadores apresentam são suas experiências em relação àquele determinado ponto ou assunto, mas a resolução é coletiva.
Na construção de uma ética que visa a formação de artistas-cidadãos com a necessária qualificação para estar a serviço da construção de uma sociedade justa e solidária, podemos apontar algumas questões que a Escola de Teatro Popular coloca durante o processo de aprendizagem:
- a consciência política – a compreensão dos mecanismos de opressão de uma sociedade dividida em classes, e a escolha em assumir uma postura crítica perante tal realidade;
- a liberdade como valor – o reconhecimento de que a manifestação de cada integrante contribui ao andamento autogestionário, e que essa premissa libertária precisa ser difundida em cada instância social;
- a valorização da diferença – o respeito pela posição individual e a percepção de que é na discussão, muitas vezes de ideias divergentes, que a ação coletiva cresce;
- a disseminação do conhecimento e o estímulo ao aprendizado - a preocupação em coletivizar os saberes dentro da organização, de modo que os indivíduos adquiram capacidades diversas;
- o sentido do trabalho – estar ciente de que cada tarefa, das mais simples as mais arrojadas, é necessária, faz parte da construção de uma proposta comum, independentemente de seu grau de complexidade;
- a ideia de lideranças situadas, que indicam alternância nas posições de “comando” (que não significam exercício deliberado de poder) sendo respeitadas a aptidão e a experiência de cada integrante.
Este compromisso ideológico assumido pelos atuadores do grupo está diretamente relacionado à postura pedagógica adotada, orientada por um preceito igualitário que visa o confrontamento das hierarquias preestabelecidas, o que aparece nos espetáculos do grupo. Os oficinandos são constantemente incentivados a construir coletivamente cenas e personagens, o que aponta para uma concepção que difere da adotada pelo senso comum em relação à arte, que se concentra na figura de um “gênio individual” indissociado de seu contexto histórico e social de formação. Ao contrário, através da troca permanente de ideias e do trabalho realizando em conjunto, processos que poderiam ser individuais, como o de construção de personagens, transformam-se numa vivência coletiva de experiências partilhadas e construção conjunta de sentidos.
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