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Ni una menos – ‘Manifesto de uma Mulher de Teatro’

 MANIFESTO DE UMA MULHER DE TEATRO - Partindo da personagem Ofélia, de um dos textos mais contundentes da dramaturgia contemporânea, Hamletmachine, de Heiner Müller – marcante na trajetória da atriz Tânia Farias -, a performance traz ao centro da arena a vociferação contra a engrenagem de violências às quais mulheres são continuamente submetidas.

Ni una menos – ‘Manifesto de uma Mulher de Teatro’

 

Nós, mulheres, não seremos mais mortas e jogadas ao rio, não seremos mais asfixiadas, nossas cabeças não serão mais enfiadas em fornos, não seremos mais estranguladas, agredidas, violentadas. Não mais fantasmas de nós mesmas, destituídas de nosso próprio ser, aviltadas, diminuídas ao silêncio de mastigar na própria língua o gosto da amargura e da humilhação.


Não seremos, porém ainda continuamos sendo. Dizemos que não seremos pra reconstruir o mínimo do “eu” alquebrado pela perversidade dos golpes e ataques aos quais infelizmente a maior parte de nós ainda está submetida. Sem direito de sermos sujeitas de contorno próprio, saudáveis, seguras, somos sujeitadas por outros que nos impõem violências abissais, o horror feito carne em matéria bruta, crosta de estilhaçamento da nossa integridade física, emocional, psicológica, financeira, social.

Isto aqui é um manifesto assim como a performance de Tânia Farias, Manifesto de uma Mulher de Teatro, em que ela parte de um dos textos mais conhecidos de Hamlet-Máquina, de Heiner Muller, pra justiçar poeticamente as mulheres atingidas pela violência de gênero. Por exemplo a personagem Ofélia, na peça, por exemplo a própria atriz, em cena, por exemplo uma artista popular, trabalhadora da cultura vítima de feminicídio, em história evocada durante o Manifesto. Que também poderia ser a de uma das muitas mulheres presentes do Graneleiro, consubstanciando a performance com a atriz. Que também poderia ser a minha.

O árduo cotidiano da desigualdade e, mais do que isso, da brutalidade nas relações de gênero é amplamente conhecido no Brasil, ainda que a maior parte das vezes as pessoas se recusem a debater o assunto. Não é possível que não se perceba o ódio dirigido ao nosso corpo, o desprezo com que nossa produção intelectual é tratada, o apagamento que nossa história sofre ainda em vida. Por isso faço questão de destacar o trabalho das mulheres nos textos que ando escrevendo aqui no FIT, assim como Tânia Farias o faz em seu Manifesto.



Não é qualquer Manifesto, importante destacar. É o Manifesto de uma Mulher de Teatro. No teatro produzimos forças pra conseguir invocar os monstros, traumas, pra enfrentar a decomposição que passamos a sofrer de dentro pra fora depois de uma violência como a que Farias narra em sua performance. No espaço do Graneleiro, clima de boate, ela institui um espaço sagrado, demarcando-o com um grande retângulo de linóleo preto no chão. Nesse território, ela inicia um rito, vociferação em performance.

Corpo elétrico, presença expandida, estatura que se eleva até as vigas do Graneleiro domando sua acústica indócil mesmo que o microfone tenha falhado. Sozinha, ela conseguiu segurar a atenção e o compromisso de cerca de trezentas pessoas, alcançando um estado performativo combativo que transformou a performance, ela própria, num ato imantado de fúria.

A dança que quer ser dançada, porém se interrompe: dedos que apontam para um lado e imediatamente em seguida para o outro, rodando em círculos – até que começam a encontrar espirais, ciclos do corpo ritmados por correntes de energia – corpa relampiante, senhora das batalhas, guerreira dos ventos. A proteção necessária pra fazer uma denúncia em cena, invocação de acalanto – não é só a dor, vivas e mortas continuam convivendo. Manifesto de uma Mulher de Teatro me lembrou a peça GrazziEllas, de Mel Campus, atriz de Londrina, no Paraná. Ela também pede proteção pra manter viva a memória de uma amiga-irmã-filha vitimada por um crime de ódio contra o seu corpo.



Seguimos todas nós, mulheres trans e cisgêneras sendo alvos da misoginia. Mas não aceitaremos nos reduzir ou nos deixar definir por ela. Existem laços de solidariedade, existe um sentimento vivo em ação de fortalecimento conjunto. Tânia Farias dança a relação com sua amiga, se relacionando com sua imagem projetada em vídeo na parede de tijolos. Na verdade, não sei se aquela imagem era da amiga de quem ela narrou a história, mas no momento entendi assim, e senti, eu também, o aconchego da companhia. O laço de afeto que acalma a maré de nosso corpo.

A direção coletiva da performance é da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do qual a atriz faz parte. Uma mulher de teatro que se coloca à prova em manifesto público encarando as reações que seu depoimento trará. Porque é um assunto muito conhecido, mas um tabu. Falar em público sobre violência sexual, feminicídio etc faz com que se desentranhem mentiras, negligências, pequenas e grandes hostilidades e silenciamentos. Mas ela não está sozinha fazendo isso, ainda que a performance seja um solo. Há muitas mulheres ali com ela, inclusive sua mãe, cujo rosto é projetado em cena. Tânia Farias também dança com ela, é dançada por ela. E com e por suas parceiras e parceiros de grupo também. E com e por nós que estivemos no público naquela noite. Vociferação. Resistência. Acalanto. Solidariedade. Mulheres em luta. Ni una menos.

 

 

Olhar crítico de AVE TERRENA

Ave Terrena é poeta, dramaturga, diretora teatral e performer. Já publicou o livro de poesias Segunda Queda, que se tornou um espetáculo poético-musical, e as peças as 3 uiaras de SP city e O corpo que o rio levou. Já teve ao todo sete textos encenados, em São Paulo, Macapá e na cidade do Porto. Integra o corpo docente da Escola Livre de Teatro de Santo André, tendo orientado o Núcleo de Dramaturgia e ocupando atualmente a função de coordenadora pedagógica